O surpreendente braço armado de Adelino Rocha

De Rates para Barcelos, de Barcelos para o mundo, o primeiro atirador português no calendário paralímpico tem disparado nos rankings da modalidade a uma velocidade vertiginosa. Um lugar na história já está assegurado. Falta a confirmação de um talento no Rio de Janeiro.

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Seis noves e quatro dez. “Já viu? Ora venha cá ver”. Adelino traz na mão o alvo de papel que acolheu os primeiros dez tiros da manhã de treino e exibe um sorriso de orelha a orelha. Não é bem satisfação o que transparece do seu olhar, é antes orgulho. Aquele resultado é apenas um dos muitos de valor acrescentado que tem coleccionado nos últimos meses e que têm feito do percurso do primeiro atirador português na história dos Jogos Paralímpicos uma completa surpresa. Uma improbabilidade, na verdade, se atentarmos à forma tardia como entrou no universo da precisão.

As armas nunca foram um lugar estranho para Adelino Rocha. Em Rates, freguesia da Póvoa de Varzim onde cresceu e onde tem estruturado a vida, todos lhe gabam a pontaria. “Força, Adelino”. “És um orgulho para nós”. Por estes dias, o atirador tem sido cravejado de incentivos. Uma qualificação paralímpica tem destas coisas - causa mossa, mexe com o imaginário, insufla a auto-estima. “Sempre gostei de armas e quando abriu o Clube de São Pedro de Rates tirei licença e comprei uma caçadeira. Comprei uma caçadeira e comecei a atirar”, recorda. Tão simples quanto isso.

Tinha 27 anos nessa altura e a experiência suficiente para saber que o futuro nunca foi uma linha recta. Uma década antes, um azar na estrada redesenhara-lhe os planos. De repente, de um momento para o outro, o futebol com os amigos passava a ser uma memória longínqua e o amanhã uma incerteza demasiado pesada para carregar. “Eu tive o acidente dois dias depois de fazer 17 anos [pausa]. No início da juventude, estava habituado a fazer tudo o que me apetecia e vi-me privado de muita coisa”, atalha.

Era necessário parar para recalibrar, estar disposto a olhar em frente com os olhos mais abertos do que nunca. Às portas da maioridade, perdera grande parte da mobilidade por força das lesões na perna esquerda, mas o instinto competitivo continuava lá, à espera de ser redireccionado. E ainda que não tenha sido imediatamente perceptível quando, entusiasmado, empunhava uma caçadeira para apontar aos pratos, em breve haveria de se manifestar.

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A oportunidade de trabalhar no Complexo de Tiro de Fervença foi o clique que não estava na agenda. Em 2002, começou a frequentar regularmente o clube local, em Barcelos, na qualidade de funcionário, o que significa que passou a sentar-se paredes meias com três stands à mão de semear: o dos 10m, o dos 25m e o dos 50m. A apetência pela modalidade intensificou-se – ou não tivesse a seu cargo a organização das provas – e do manuseamento dos dossiers à carreira de tiro foi um passo. Ou melhor, uns sete ou oito para a especialidade dos 50m e mais uns quantos para as duas restantes, se contados a partir do gabinete. “Como trabalhava ao fim-de-semana, deixei de poder competir fora em provas de tiro aos pratos”, acrescenta. “E como aqui não precisava de sair…”

“Aqui” é o interior de um edifício rugoso, isolado e entregue ao silêncio, só entrecortado pelas chicotadas das armas e pelo ruído dos invólucros metálicos a amontoarem-se no chão. Adelino abre a mala na qual repousam as três armas que o vão acompanhar no Rio de Janeiro e ergue a de 25m. Acerca-se da cabine, coloca a protecção nos ouvidos. Na ponta do indicador, tem um quilo de peso para puxar, assim que premir o gatilho. Um disparo, pausa, um disparo, pausa. Uma série de cinco, antes de outra série de cinco. “Já viu? Ora venha cá ver”.

Comprovamos que Adelino não é um atirador qualquer. É um atleta que conseguiu abater vários máximos nacionais, que se sagrou campeão português múltiplas vezes, que derrubou um recorde europeu, que alcançou uma mão-cheia de marcas de mestre atirador nas diferentes disciplinas. É um atleta que figura actualmente no 14.º lugar do ranking mundial nos 25m, no 17.º nos 50m e no 24.º nos 10m. Um registo ainda mais impressionante se tivermos em conta que parte dele começou a ser construído somente a partir de Março de 2015. Foi nessa altura que foi submetido a uma rigorosa avaliação clínica, em Londres, que resultou no aval da federação internacional para integrar as provas oficiais de tiro adaptado.

É mais fácil, porém, avançar para uma retrospectiva com a ajuda do próprio: “Em 2010 fez-se cá o Campeonato do Mundo com réplicas de armas antigas e eu comprei uma arma aqui na feira, uma arma de pólvora preta. E em 2011 comecei a competir para ir lá fora, a Campeonatos do Mundo e da Europa nessa disciplina. No primeiro ano, não consegui mas em 2012 fui à Alemanha, ao Campeonato do Mundo. Não correu muito bem, mas de então até agora tenho ido a várias provas”. Numa delas, concretamente em Granada, há dois anos, sagrou-se vice-campeão mundial da especialidade, na distância de 50m, e despertou em definitivo a atenção do seleccionador nacional, Domingos Rodrigues.

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Paulo Pimenta

O desafio de tentar integrar a missão paralímpica começou então a ganhar forma e a luz verde recebida na capital inglesa foi o impulso de que precisava para acelerar sem olhar para trás. Tudo o resto se foi encaixando à velocidade de um disparo. “Nessa altura, só tinha pistola de ar comprimido. Fiz logo prova, fiquei em nono lugar. Vim para Portugal, comprei a de 25m. Só tinha três provas [Croácia, Austrália e EUA] para conseguir a quota [respeitante ao país] para os Jogos. Na Croácia, fiz ar comprimido e pistola 25m. Consegui mínimos nas duas mas não consegui a quota. Depois, à Austrália não fui, porque não havia verbas para a federação me levar. Entretanto, um amigo emprestou-me uma pistola de 50m, de Julho a Novembro treinei-me com ela e consegui a quota com uma arma emprestada”, descreve, descontraidamente.

O apuramento estava praticamente à vista, faltava “apenas” um passo final: obter os dois mínimos necessários na distância de 50m. Uma missão que obrigou à participação na Taça do Mundo de Fort Benning e a mais duas viagens, ao Dubai e a Banguecoque. A segunda prova não lhe correu de feição, mas a verdade é que nem sempre a virtude está no meio: nos EUA e na Tailândia esteve à altura das exigências e assegurou a estreia absoluta de Portugal numa competição paralímpica de tiro, modalidade que faz parte do calendário dos Jogos desde 1976.

Esta proeza seria suficiente para deixar realizada a maioria dos atletas, mas Adelino permanece imperturbável quando lhe perguntamos qual o real significado de um contributo desta magnitude. “Fiquei feliz por conseguir. Agora, ser o primeiro atleta português [a participar nuns Jogos nesta modalidade], sinceramente, não me diz muito”. Talvez seja a reacção natural de alguém que se acostumou a surpreender os outros sem com isso se surpreender a si mesmo.

Fecha-se a porta do stand de 25m no Complexo de Fervença e instantes depois estamos instalados na sala dos 10m, onde os disparos já são reduzidos à categoria de meros estalidos. Esta arma, cedida pela Federação Portuguesa de Tiro, pesa 1,1kg e comporta um gatilho de 500g. A distância para o alvo é obviamente mais acolhedora mas a técnica de execução é basicamente a mesma. “É a respiração que nos dá o relaxamento de que precisamos”, explica Adelino, como se tudo fluísse automaticamente. De resto, é encaixar a mão livre no bolso, tentar baixar o ritmo cardíaco e elevar os níveis de concentração. “Em certas alturas, começa-se a sentir uma falta de ar, mas vai-se ganhando experiência”.

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No fundo, no fundo, uma prova de tiro é um problema pessoal. É uma espécie de luta intrínseca, um instrumento para medir até que ponto um ser humano é capaz de se dominar a si mesmo. Um desafio em que o principal adversário não tem outro nome que não sistema nervoso. “Temos que pensar no que estamos a fazer e ao mesmo tempo abstrairmo-nos de tudo. Temos que estar a treinar e tentarmos colocar-nos no evento. Isto, basicamente, é estarmos concentrados na pressão que fazemos no punho, na arma, na respiração”, acrescenta.

Estes são os factores que Adelino pode controlar. Os outros, como a limitação de movimentos com que tem de lidar ou a claridade que vai encontrar no Rio de Janeiro, obrigam-no a adaptar-se. “O acidente já foi há uns anos e eu estou em forma [risos], mas há dias em que me sinto mais cansado. Tenho 75% de invalidez motora, estou com 40 anos, começa a custar”, avalia, antes de revelar uma pequena amostra de preocupação com o contexto que vai encarar: “É muito importante a luz. Parece que lá há muita luz e já li que os atletas que estiveram lá agora se queixaram bastante”.

Sim, a luminosidade tem impacto na visibilidade, tal como o vento tem o condão de interferir na trajectória dos projécteis. Cálculos? Somente à medida que se vai atirando, até porque estamos a falar de armas com miras reguláveis e de atiradores com experiência extra. Tudo somado – e contabilizado especialmente o peso da concorrência, com o surpreendente ucraniano Oleksii Denysiuk à cabeça  –, vamos lá ver que prognóstico é possível traçar: “Quando chegar lá, vou tentar fazer o meu melhor. Se for suficiente para disputar as medalhas, muito bem… O que me deixava satisfeito? Ir à final”. Ou seja, integrar o lote dos oito primeiros. Uma nota adicional, para pôr os pontos nos i: “Os meus adversários fizeram as provas todas e eu fiz o essencial para garantir o apuramento. Agora vou-me treinando por cá o melhor possível”.

O regime de preparação incluiu sessões por conta própria em Barcelos, ainda que em regular contacto telefónico com o treinador, e um curto estágio no Centro Desportivo do Jamor (que dispõe de alvos electrónicos), já perto da data da partida para o Brasil. Sem perder demasiado tempo a elaborar cenários, o atirador português lá vai deixando cair que espera encontrar “algo de diferente” no Rio, “uma coisa enorme”. Na bagagem, leva confiança q.b. e um instinto competitivo que já vem de outras andanças, dos tempos em que participava em torneios de pool, ou não fosse uma mesa de snooker também um grito de apelo à precisão.

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Paulo Pimenta

Do lado de lá do Atlântico, estará um atleta empenhado em superar-se. Do lado de cá, uma família a prestar apoio à distância, a começar pela mulher e pelas duas filhas, de sete e 11 anos. “Estão todos a torcer por mim, claro”, lança para o ar, com um sorriso tímido. E fá-lo-ão em três etapas: a 9 de Setembro, quando se estrear na prova de pistola a 10m, a 11 (25m) e a 14 (50m). O voo de partida, esse, está agendado para dia 4, o que significa que terá um período reduzido para se ambientar.

Desafiado a escolher o momento que mais o marcou até agora numa prova de tiro, Adelino Rocha não precisa de muito tempo para pensar e até responde em dose dupla. “Foi em 2015, quando fui mestre atirador no ar comprimido, a 10m. Foi uma prova que me deu gozo”. “E também quando foi cá o Campeonato da Europa de réplicas de armas antigas e fomos campeões da Europa por equipas, com recorde do mundo”. Se tudo correr conforme o previsto, dentro de duas semanas trará na mala, juntamente com as três pistolas, um novo episódio para juntar ao álbum e formar um tríptico de boas memórias.

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