“O que a floresta mais precisa é de organização colectiva dos produtores privados”

Américo Carvalho Mendes, economista ligado à floresta, diz que o problema em Portugal tem sido a política trabalhar sempre para sectores minoritários.

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“A floresta pode ser rentável se os custos de gestão diminuírem”, diz Américo Carvalho Mendes Fernando Veludo/Nfactos

Professor de Economia na Universidade Católica do Porto, Américo Carvalho Mendes assinou um estudo que, há mais de uma década, se propôs avaliar o valor económico da floresta portuguesa. Mais do que académica, a intervenção de Carvalho Mendes na área florestal é também prática, ao integrar, desde a fundação, a Associação dos Produtores Florestais do Vale do Sousa. Diz que é impossível erradicar os incêndios da realidade portuguesa, mas que é viável melhorar a gestão florestal, se as políticas públicas, a investigação técnica e as práticas económicas se organizem em torno da estrutura fundiária da floresta – e não de costas voltadas para ela.

Em 2004 a avaliação que fez do valor da economia da floresta apontou para os 1300 milhões de euros. Quanto vale a floresta agora?
Não refiz as contas, não me atrevo a avançar um número. Mas com certeza que será menos. Em termos reais, de certeza absoluta. E temo que em termos nominais também. Mas não me atrevo a avançar um número.

O que se depreciou tanto na floresta?
Tem havido um declínio da floresta de pinheiro bravo. E sabemos que a sua substituição por parte de eucalipto, mesmo sendo uma espécie de crescimento rápido, não dá rendimento logo no primeiro ano. E a continuação dos incêndios também vai degradando outro tipo de produtos que a floresta dá.

Nos últimos 25 anos os incêndios devoraram 2,5 milhões de hectares. Teria sido possível evitar uma destruição desta dimensão?
Eu sou dos que acha que a máxima de Portugal sem fogos é uma estupidez. Nesta parte do mundo o risco de incêndio estará sempre presente, como outros têm risco de avalanches ou de erupções vulcânicas. O que é preciso saber é se estamos colectivamente organizados para fazer face a esse risco, prevenindo o que for de prevenir e minimizando os danos que daí decorrem. A resposta, como infelizmente sabemos, é que na área florestal ainda não chegámos ao ponto que seria necessário.

E que ponto é esse?
Precisamos de construir, em termos organizativos, económicos e técnicos uma silvicultura preventiva adequada à estrutura fundiária que temos na floresta. Desde que começou a haver política florestal, há mais de 200 anos, que a estrutura fundiária não é tida em conta

Pode explicar melhor?
Temos uma política florestal que tem trabalhado para sectores minoritários do nosso espaço florestal. Durante muito tempo foi para a floresta pública. Depois foi para os baldios, que foram geridos como sendo floresta pública. E os 90 e muitos por cento de área florestal privada nunca tiveram uma política adequada. A política florestal faz de conta que a área florestal em Portugal é floresta pública. E isto acontece na política florestal, mas também nas propostas técnicas. As restrições que decorrem na estrutura fundiária não são tomadas devidamente em conta. Por exemplo, não podemos reduzir significativamente o risco de incêndio se não formos capazes de gerir e reduzir a massa combustível que se vai acumulando na floresta, dando-lhe uma utilização mais nobre. Claro que queimá-la já é bom. Ou cortá-la e deixá-la ficar também é bom. Mas essa biomassa pode ter outras utilizações.

É economicamente viável?
Por que não? Se houver investigação direccionada, devemos conseguir encontrar uma solução técnica viável e adequada à pequena dimensão. Os nórdicos já encontraram forma de produzir açúcar com os resíduos da floresta. O nosso problema é andar a fazer de conta que a floresta em Portugal pode ser gerida como se fosse floresta pública. Ou então sonhar que podemos substituir estes proprietários florestais por outras criaturas vindas não sei de onde, inventado fundos imobiliários florestais, investidores e mais não sei o quê.

Os proprietários vão começar a ser cadastrados agora.
Com o cadastro vão começar a descobrir situações de proprietários desconhecidos. O problema é estarem a criar um novo actor na gestão florestal, o município [o Governo admite entregar terras abandonadas à gestão das autarquias]. Acho que é um mau caminho.

Qual defende?
Se estivermos num território em que existam organizações de produtores florestais, devem ser chamadas em primeiro lugar, e perceber se querem assumir a gestão desses espaços.

Assumir a gestão ou a posse?
A posse não, o dono há-de aparecer. A minha questão é: porque é que agora se vai convocar quem não tem estrutura para fazer gestão florestal quando já há no terreno quem tenha?

Mais de 90% da floresta pertence a pequenos proprietários privados. Uma parte deles são absentistas ou até desconhecedores da propriedade que têm. Como se resolve?
Resolve-se se o Estado fomentar a organização associativa desses agentes económicos – e que tem fomentado pouco. Qualquer entidade terá muita dificuldade em lidar individualmente com os 400 ou 500 mil proprietários que se diz que existem. Mas já pode lidar com as cento e tal associações florestais, que, entre outras coisas, já organizaram em ZIF (Zonas de Intervenção Florestal) mais de um milhão de hectares. Se tiramos um milhão e tal de montado de sobro e azinho, já temos quase metade do território potencialmente “zifável”.

E as ZIF, que estão praticamente sem vida, serviram para quê?
Essa é outra história que está mal contada. É verdade que a quase totalidade das ZIF tem uma existência nominal, mas mesmo isso é algo que não deve ser subvalorizado. Para criar uma ZIF foi preciso muito trabalho. O que temos de incentivos públicos para isso? Temos financiamento muito generoso no ano um e no ano dois. No ano três, quando a ZIF já está constituída, o incentivo público é zero.

E não faz sentido que seja assim? Que ao fim do terceiro ano tenham um plano de gestão que as possa remunerar?
Mas o plano de gestão não dá dinheiro, não paga os técnicos que têm de estar ali, com estabilidade profissional e remuneração. No terceiro ano nenhuma associação consegue ter receitas. O que defendo é algo parecido com o que foi feito na área social, em que há um contrato social, negociado entre o Estado e uma IPSS. Esse contrato terá de ser entre o Governo e as associações que já existem.

A política florestal tem de ter uma dimensão mais social do que económica?
Quando falo em social não é no sentido assistencialista do termo. Mas, tendo um sector florestal em que a produção está dispersa, não há nada que se possa fazer sem esforço de organização associativa. É nesse sentido que a política florestal tem de ser orientada, e ainda não foi. E é com as associações que o Estado deve contratualizar um conjunto de serviços na área florestal: criar zifs, fazer trabalhos de silvicultura preventiva, envolver as populações locais, fazer educação cívica. Esse contrato social não existe.

Defende que parte do dinheiro usado para o combate deveria ser canalizado para aqui?
Nem sequer entro na discussão do combate e do dinheiro que para lá vai. Eu começo com o Fundo Florestal Permanente (FFP), que tem cerca de 20 milhões de euros anuais e que deveria servir para fomentar o associativismo florestal e não para pagar técnicos florestais nas câmaras ou na GNR.

Que parte do FFP tem sido atribuída às associações de produtores?
Não sei a percentagem exacta. Deveria ser mais de 90%, mas sei que há uma verba significativa que não vem para aqui.  

Defende a ideia de que os produtores florestais prestam um serviço público ao manterem viva a paisagem rural ou garantindo o sequestro de carbono. Têm sido devidamente compensados por isso?
Há muito a fazer ainda. Podem contrapor que, no Norte da Europa, não é assim. E o financiamento não é publico, na sua maioria. Mas as associações nasceram num momento muito diferente e num país com uma cultura muito diferente. Estão sobretudo na negociação com a indústria, na discussão de preços dos produtos florestais. E, estando ai, o que fazem é ficar com uma percentagem da venda.

E cá isso não seria viável?
As nossas associações florestais nasceram numa altura em que tínhamos as indústrias a jusante concentradíssimas e com um tecido de madeireiros e outros negociantes já implantadíssimos no terreno. Portanto, a história é o que é. Surgiram com anos de atraso. Aqui surgiram com os sistemas de incentivo ao investimento da floresta. O programa de sapadores foi a primeira medida que permitiu às associações de produtores florestais estar no terreno e mostrar resultados: se um associado tem uma mata limpa percebe que quando chega um incêndio, ele não progride. Isso vê-se.

Se a floresta é uma actividade rentável, por que razão os proprietários não as limpam?
Da maneira que está, a floresta não é rentável para muitos proprietários. Pode passar a ser rentável se os custos da gestão florestal diminuírem. E isso só acontece se puderem recorrer aos serviços de sapadores da sua associação, se tiverem aconselhamento, se aparecer a tal investigação que está a faltar. Enfim, é preciso arranjar soluções viáveis. Não é como naquele programa das centrais de biomassa que, no nosso caso, tínhamos de ir entregar a nossa biomassa a Alijó [no Douro, a mais de 100 quilómetros]. Isso parou, porque tinha de parar.

Não falta aparelho legislativo, nem falta planeamento. Mas temos os Planos Regionais de Ordenamento Florestais (PROF) suspensos desde 2012 e as ZIF no estado que nos descreveu. Isso é comprometedor ou não?
As políticas têm de estar orientadas para ajudar proprietários florestais a organizarem-se para melhorar a gestão da floresta, pela via associativa. Gerir uma floresta em Portugal em primeiro lugar é gerir pessoas, em segundo lugar é gerir pessoas, em terceiro lugar é gerir pessoas, e só em quarto lugar é que é gerir árvores e técnicas que fazem crescer as árvores.

E como se gere pessoas que não têm interesse na floresta?
Uns têm muito interesse, outros têm pouco. Mas todos têm algum interesse.

Defende medidas mais intervencionistas, como há na Inglaterra, relativas ao absentismo?
Acho que não se deve sancionar o absentismo e o não uso da propriedade em abstracto. Só quando estivermos num contexto em que, de uma forma objectiva, podemos dizer que determinado proprietário tinha condições para não ser absentista e está a sê-lo, e a prejudicar os outros. É preciso, em primeiro lugar, que as medidas apontem no sentido de ajudar os proprietários florestais a organizarem-se. E, depois, se num processo de organização surgirem, como surgem sempre, proprietários que são renitentes e através do seu comportamento individualista impedem o avanço colectivo, aí defendo medidas que os discriminem negativamente.

A lei de arborização e rearborização permite a plantação florestal sem comunicação prévia aos serviços públicos em áreas até dois hectares. Isso não vai aumentar a eucaliptização?
E possível que haja áreas plantadas de eucalipto onde essa espécie não seja a mais adequada. Mas essa questão tem sido empolada. O eucalipto é uma espécie que se adapta a muitas partes do nosso território e que é economicamente interessante para o proprietário e para o país.

A indústria florestal portuguesa é competitiva, mas precisa de importar matéria-prima. As empresas deveriam ter outro tipo de responsabilidade no fomento florestal?
As empresas precisam de fazer mais do que têm feito, sobretudo naquilo que a floresta mais precisa: organização colectiva dos produtores florestais privados. Deveriam apoiar muito mais as formas de gestão florestal agrupada. Percebo que possa haver receio por parte da indústria de que os proprietários florestais possam dar passos nesse sentido – porque vai reforçar o seu poder negocial –, mas é importante para a própria competitividade dessas indústrias que os produtores florestais estejam mais organizados.  

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