J.K. Rowling, a criadora do universo Harry Potter, já não é o seu deus

Os fãs cresceram, o feiticeiro também e o seu mundo ganhou novos autores – oficiais e informais, entre os seus leitores mais fanáticos. Há quem pense que Rowling pode ser o próximo George Lucas.

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Leon Neal/AFP

O “patronus” de Ron Weasley é um cão Jack Russell. O nome completo de Murta Queixosa é Murta Isabel Warren. O tio de Harry Potter adora o Top Gear. Fluffy, o cão de três cabeças, foi repatriado para a Grécia. As propinas em Hogwarts são gratuitas com um só tweet cheio de autoridade, J.K. Rowling pode mudar e moldar o mundo de Harry Potter com informação nova. E, nos anos que se seguiram à conclusão da história do herói e da sua vida em Hogwarts, foi o que fez.

Em tempos, os grandes fãs de Harry Potter estavam obcecados com cada nova palavra proferida por Rowling e os detalhes do que a escritora dizia eram levados tão a sério como se tivessem a força e a autoridade das Escrituras. Mas nos últimos tempos isso mudou. Rowling continua a ser uma figura central e muito acarinhada pela base de fãs da série Harry Potter. Mas ela já não é o seu deus, distante e omnisciente.

“É óbvio que as pessoas têm uma relação conflituosa” com ela, diz Andrew Slack, co-fundador da organização beneficente Harry Potter Alliance e membro do centro comunitário Civic Hall Labs, em Nova Iorque. "Mas isso tem menos a ver com Jo e mais a ver com crescermos”. O que é que mudou? “Os nossos heróis não são o que pensamos que são. São tal e qual como nós” – esta foi a lição que Slack aprendeu com os livros de Harry Potter e é a ela que recorre para o explicar.

A grande maioria dos leitores de Rowling provavelmente nunca se aventurou num Tumblr de headcanon [colecções de interpretações de fãs sobre as personagens], ou nunca comprou um disco de Wizard Rock – um tipo de música inspirado no mundo Harry Potter – na convenção LeakyCon, dedicada exclusivamente ao universo… Harry Potter. Mas o núcleo duro dos fãs de Harry Potter tem uma presença inigualável na Internet. Esses fãs, tão numerosos quanto apaixonados, fizeram com que a cultura da fan fiction – a ficção feita pelos fãs, escritos pessoais que continuam histórias com base no original – passasse das margens da Internet para o mainstream, porque toda uma geração de leitores insaciáveis tratou de preencher os espaços deixados entre os livros de Rowling com as suas próprias histórias. Histórias com maior ou menor mérito literário, que lêem e partilham entre si.

“O intervalo entre O Cálice de Fogo e A Ordem da Fénix”, exemplifica Claudia Morales, que trabalha para a Harry Potter Alliance, "foi a espera maior e mais tortuosa da primeira vaga. Todos precisávamos de algo com que preencher esse tempo, porque o nosso interesse claramente não se estava a desvanecer”. Os fãs criaram sites de notícias, enciclopédias e obras de beneficência influenciadas pelo mundo Harry Potter. Vasculhavam cada afirmação de Rowling em busca de uma pista para a próxima história e usavam esses mesmos detalhes para escrever as suas próprias histórias.

À medida que chegava o dia de publicação de Os Talismãs da Morte, os leitores ponderaram o seu futuro – agora que tinha sido publicada, lida e debatida a história final da série Harry Potter. “Houve uma altura, depois de ter saído Os Talismãs da Morte, que pensámos que nunca mais haveria histórias de Harry Potter”, lembra Morales. Mas Rowling não parou.

Na sua conta no Twitter, no site enciclopédico Pottermore, na nova peça Harry Potter and the Cursed Child, no filme Monstros Fantásticos e Onde Encontrá-los (estreia em Portugal a 17 de Novembro), o mundo mágico oficial de Harry Potter continua a expandir-se. Mas os fãs mais apaixonados dão agora por si a ponderar se é possível que a visão de Rowling para o mundo que ela própria criou esteja a divergir tanto do mundo que existe nas suas imaginações. E, se puderem escolher, eles podem mesmo preferir o seu mundo. E não o de Rowling.

Alguns fãs sugerem que Rowling se arrisca a tornar-se o próximo George Lucas – uma figura muito amada que, continuando a fazer emendas e afinações no universo Star Wars que criou, chegou ao ponto de os fãs já não o suportarem. E embora Rowling tenha dito que The Cursed Child é provavelmente o fim das novas histórias sobre Harry, o futuro dos conteúdos oficiais sobre o mundo Potter parece infinito.

The Cursed Child foi escrito por Jack Thorne, com o contributo de Rowling, e considerado como cânone oficial. Embora se tenha saído bem comercialmente nas livrarias, os fãs mais ferrenhos reagiram tanto positiva quanto negativamente. A peça envolve Ron, Harry e Hermione já crescidos e os seus filhos, um tema que se tornou solo fértil para a fan fiction desde que Rowling deu, no epílogo do último livro, uma pequena amostra das vidas adultas das suas personagens.

A magia de Potter não tem idade nem país, mas tem casa no Porto

“Sendo eu alguém que há muito é fã, foi como ler uma versão pior de coisas que já andava a ler há anos”, diz Sonja Petrovic, que faz parte do grupo sem fins lucrativos Imagine Better. “E foi doloroso pensar isso quando voltava, finalmente, ao meu mundo mágico favorito”. Petrovic começou a ler a série Harry Potter antes de ter idade para entrar em Hogwarts. Liderou um clube Harry Potter no liceu. Na Internet, geria um Tumblr para partilhar headcanons Harry Potter de temática queer.

“Eu era literalmente a miúda Harry Potter. Até alguns professores me chamavam isso”, diz Petrovic. "As pessoas mais envolvidas com ser fã, especialmente online, eram outros miúdos que não se integravam. E todos estávamos unidos por esta história linda na qual nos revíamos e que aprendemos a adorar”.  

Quando Petrovic pegou em The Cursed Child, houve coisas de que gostou: a história de Scorpius Malfoy, o filho de Draco Malfoy, o rival de Harry na escola, bem como da forma como a peça explora os temas da solidão, uma linha narrativa comum nos livros originais. Mas, ao contrário da série original, foi mais difícil para Petrovic relacionar-se com a versão do mundo de Rowling patente em The Cursed Child. Relacionou-se mais com as histórias criadas pelos fãs. 

“Têm sido explicitamente queer. Têm sido mais verdadeiras para com as personagens originais pelas quais nos apaixonámos. Têm lidado melhor com temas como as viagens no tempo”, exemplifica Petrovic. “Têm lidado com a solidão e com o isolamento sem serem forçosamente sobre situações que os envolvem. Tinham mais nuances e eram mais calorosas.”

Morales explica também por que é que as versões dos fãs lhe dizem mais. “Como cresci com wizard rock e fan fiction, nunca me senti particularmente fiel à suposta santidade do cânone”. Mais tarde, confessa: “Ainda não li mais do que 50 páginas de Cursed Child. Isto nunca me aconteceu”.

Talvez de forma paradoxal, Morales, Petrovic e Slack dizem que os valores que retiraram dos sete livros Harry Potter os ajudaram a crescer e a ultrapassar a visão de Rowling para o universo expandido do franchise. Todos são activistas, envolvidos em organizações de beneficência com ligações directas aos fãs e que operam na mudança do mundo real, tudo por causa das lições morais do trabalho de Rowling.

“No fim de contas, estarei sempre grata a J.K. Rowling por criar este mundo, por ensinar a uma geração de fãs como combater o mal com amor e coragem e amigos, por revolucionar a literatura e por revolucionar a cultura dos fãs e por me revolucionar”, diz Morales. “Mas pôr o cânone num pedestal e construir a cultura dos fãs em torno do cânone é incongruente com as mensagens de Harry Potter. Tudo em Harry Potter é diferente; os seus fãs não são excepção”.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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