Saudades do Bloco e do PCP

Os bons velhos tempos do Bloco e do PCP na oposição parece que foram há um século. Temos saudades deles.

Do brilhantismo de Francisco Louçã a fazer a vida negra a José Sócrates. Da sabedoria contida de António Filipe a abrir fendas na argumentação de Passos Coelho. Da fluência de Catarina Martins a demolir a ultra-ortodoxia do FMI ou do enternecedor senso comum de Jerónimo de Sousa a escarnecer da herança fétida de uma geração de banqueiros incompetentes e trambiqueiros. Faz-nos falta uma oposição de causas, por muito que não as subscrevamos. Faz-nos falta uma oposição raçuda e incómoda. Mesmo contaminada pelo radicalismo, pela irrealidade ou pela saudade de um tempo que já não existe, a contundência da esquerda extrema no parlamento faz tanta falta ao debate político como uma pitada de sal na comida. No actual estado, nem temos o Bloco e o PCP no Governo (o que se saúda), nem na oposição (o que se lamenta). Temos uma pasta mole, um vazio que tolera um governo de contingências e torna ainda mais insípida e errática a oposição do PSD e do CDS.

Jerónimo e Catarina estão com um pé dentro da geringonça e com outro fora, o que lhes trava os movimentos. Já há muito reparáramos que eles se arrependem todos os dias de dar uma mão a um Governo que navega com o símbolo da devolução dos rendimentos aos funcionários públicos e pensionistas na vela, mas segue as rotas traçadas em Bruxelas e em Frankfurt. A sua capacidade de se equilibrarem no “sim, mas” tem sido o principal segredo da estabilidade política e da durabilidade do Governo. A naturalidade com que passam do afago ao raspanete, com que criticam agora, avisam depois ou mais tarde censuram o Governo é uma notável definição do equilíbrio precário. Que só não se esvazia na incoerência ou na hipocrisia porque, quer o Bloco, quer o PCP souberam embrulhar o seu apoio numa teoria. A teoria do mal menor. O Governo é o governo do PS marialva, pequeno-burguês de fachada socialista, empenhado com a Europa, fiel ao défice e aos compromissos da dívida. É o purgatório, mas o PSD e o CDS são piores. São o inferno.

Temos saudades da esquerda extrema no Parlamento porque, a sua pressão serviria seguramente para evitar desnortes como o da Caixa Geral de Depósitos, que há meia dúzia de meses apresentava necessidades de recapitalização de dois ou três mil milhões de euros e, após oito meses de negligência e incompetência vai obrigar à aplicação de 5.1 mil milhões. Era interessante saber o que diriam noutras circunstâncias Jerónimo e Catarina sobre o aumento dos salários aos administradores - “estranho”, limitou-se a esboçar o Bloco; “inaceitável”, retorquiu o PCP, baixinho, não fosse alguém ouvir. O que lhes importa agora é garantir que a Caixa permanece pública. Mesmo que receba dinheiro privado. Mesmo que os desmandos das suas administrações ou a lassidão com que este governo encarou os seus problemas nos obriguem a pagar de novo a factura.

Com a argúcia táctica de Catarina Martins liberta de arrependimentos, há muito que teríamos percebido que o Governo é mestre na arte dos “jobs for the boys”. A generosidade das suas nomeações teria destapado uma polémica acesa e interminável. Mas nada aconteceu. Para lá de notícias desgarradas nos jornais, pouco ou nada se ouviu sobre a nomeação de 273 quadros para o aparelho de Estado à margem do crivo da CRESAP, a Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública, nos primeiros quatro meses do Governo. A troca de nove dos 16 gestores dos fundos comunitários esfumou-se na pax da “geringonça”. Não se deu conta de que no Instituto de Emprego e Formação Profissional 120 dirigentes foram substituídos num estalar de dedos. Pouco se falou sobre a existência de mais 172 pessoas a trabalhar nos gabinetes ministeriais em comparação com Setembro de 2015. Sim, o que diriam também da viagem a Lyon do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais?

Com o PCP e o Bloco na oposição, talvez tivesse havido um debate a sério sobre as intenções do Governo de obrigar a banca a enviar todos os anos para o fisco os saldos das contas bancárias dos portugueses. De uma penada, todos passávamos a ser suspeitos de falcatruas fiscais e todos teríamos de ceder um direito básico da nossa reserva pessoal à gula inquisitória e controladora da administração fiscal. A medida ficou, em parte, pelo caminho. A obrigação ficará reservada a quem tiver contas acima dos 50 mil euros. O Governo queria também criar à escala nacional um registo de doentes oncológicos onde todos os pacientes, os curados, os que estão em tratamento ou os que estão em estado grave numa cama de hospital, seriam identificados para satisfazer os devaneios estatísticos do Estado. Não fora a contundente resposta da Comissão Nacional de Protecção de Dados, que considerou a regressão do sigilo bancário uma “violação clara da Constituição” e uma “restrição desnecessária e excessiva dos direitos fundamentais à protecção de dados pessoais e reserva da vida privada”, talvez o Governo não tivesse recuado.  

A ausência do Bloco e do PCP do espaço da oposição acabou por tornar ainda mais unidimensional o debate no espaço público. Os seus zelotas, principalmente os do Bloco, não poupam oportunidade para zurzir qualquer ousadia que questione o Governo e os que os apoiam. Não há título de jornal que lhes escape, não há declaração contrária que não seja diluída no caldo de cultura do preto e branco, não há lugares ao talvez nem ao porém. Os posts nas redes sociais provenientes dos gabinetes do Governo abundam, num remake da estratégia do Governo Sócrates para demolir a credibilidade da imprensa. As principais vítimas desta vigilância  não são o Observador nem os colunistas mais à direita. É o PSD e o CDS, que nos últimos meses parecem guerrilheiros perdidos na mata, circunscritos a fazer de snipers, sem ideias para romper o cerco nem músculo para um combate em campo aberto.  

Com ou sem arrependimento, com ou sem ameaças sobre a existência de linhas vermelhas, a verdade é que a passagem do Bloco e do PCP para a esfera do poder mudou a política. E não apenas por erigir uma solução inovadora e alternativa para a governação. Mudou também porque ficámos com um parlamento amorfo e um campo de debate mais curto. Fazem-nos falta as denúncias crispadas, as interpelações contundentes, a pressão permanente que torna a fiscalização ao Governo mais consistente e efectiva. Com o PSD desorientado e remetido a um buraco de onde espera sair um dia com a ajuda da União Europeia, com o CDS a procurar uma nova identidade que o afaste dos “pontos em comum com o MPLA” e, ainda mais, da conotação com uma central de negócios, quem anda feliz é António Costa. Poucos primeiros-ministros tiveram como ele uma tropa de choque tão efectiva e, apesar das ameaças e arrependimentos, tão leal. 

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