Este Afro-Baile é de todos, para todos nós

Os Celeste/Mariposa nasceram para mostrar uma riqueza escondida de muitos, a da música dos países de expressão portuguesa. Querem preservar-lhe o passado e dar-lhe lugar no nosso presente. São editora e promotora, são grupo de acção cultural.

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Wilson Vilares e Francisco Sousa uniram-se em 2009 e a música africana não tardou a impôr-se-lhes foto: Fernando Mendes

Francisco Sousa procurava e não encontrava. DJ e produtor ligado às electrónicas house e techno (assina José Rotativo), queria “música nova”, música que lhe despertasse novo entusiasmo. O tempo é anterior a 2009. Foi nesse ano que encontrou Wilson Vilares, também ele da área da house e do techno, num evento da Red Bull Music Academy. Decidiram começar a trabalhar juntos e não demorou até que Francisco, guiado por Wilson, descobrisse o que não encontrava. Não demorariam a nascer os Celeste/Mariposa.

São editora, promotora e dupla de DJ. São arqueólogos da música africana umbilicalmente ligada a Portugal e da sua diáspora. Escavam o passado que, fora das comunidades africanas e dos seus descendentes, pouco ouvimos. Registam o presente: Chalo Correia, angolano imigrado para Portugal nos anos 1990, teve honras de inaugurar a discografia da editora com Kudihohola, editado em 2015. Espalham a cultura: podemos acompanhar o festim de dança e de descoberta que são os seus DJ sets, composto de preciosidades resgatadas ao património musical dos PALOP, mas a refeição completa dos Afro-Bailes que organizam inclui jantar angolano/moçambicano/são-tomense/cabo-verdiano/guineense, seguido de concerto, seguido de DJ set. São, digamos, um grupo de acção cultural que pretende dar visibilidade a música que, dizem, se mantém “completamente enterrada”. “Quando vamos a Amesterdão ou Bruxelas, vemos miúdos que nunca ouviram aquela música histéricos, a dançar e a gritar. Eles nunca tiveram contacto com aquela cultura e ficam assim. Porque é que no meu país não acontece o mesmo?”, questiona Wilson Vilares. “Num país com estas cinco ex-colónias, é absurdo que assim seja”.

Francisco Sousa, lisboeta com anos de vida no estrangeiro, demorava a encontrar algo que lhe devolvesse verdadeiro prazer na música. “Os Celeste/Mariposa foram como abrir uma porta e descobrir tanto mais”. Wilson Vilares, filho de angolanos, que cresceu em São Martinho do Porto e no Monte da Caparica, tinha na memória e na vivência os sons do semba, da marrabenta, do gumbé, das mornas e das coladeiras. “Quando começámos a tocar coisas diferentes [do techno e da house], era inevitável passar pela música africana”, explica. “Se dermos uma volta em Lisboa, o que não falta é música africana, comida africana, pessoas africanas. Parecia estúpido não escavar esse mundo”. Fernando acrescenta: “Na segunda digressão [europeia] que fizemos, disseram-me uma coisa que nunca mais esqueci, ‘vocês é que estão no centro’. Nós estamos habituados a ser julgados como periferia. Como portugueses, crescemos a pensar assim. Pela primeira vez, disseram-me que estávamos no centro. No nosso mundo, estamos realmente no centro. O centro da diáspora dos PALOP.”

Em Maio deste ano foi editado Space Echo, compilação de música cabo-verdiana das décadas de 70 e 80 marcada pela introdução de instrumentos então modernos como o Moog e outros sintetizadores. Ouvimos ali Bana, António dos Santos, José Casimiro ou Dionísio Maio, ouvimos música geradora de tanto entusiasmo e curiosidade que a edição da Analog Africa, editora alemã especializada em compilar música africana das décadas de 1960 e 1970, esgotou num ápice. Os Celeste/Mariposa foram responsáveis por grande parte do alinhamento, retirado à colecção pessoal que vêm reunindo desde 2009 – um trabalho infindável.

Existem as “incontáveis” edições de autor, os vinis que vão respigando e as cassetes e CD que a rede de contactos que criaram lhes vão fazendo chegar às mãos. “É infinito e de uma imensa qualidade. Se o projecto está aqui é porque essa qualidade nunca foi devidamente reconhecida”, acusa Wilson Vilares. Este ponto é muito importante. Existe o desconhecimento que, em tempos de internet, até funcionará a favor da música – na mesa do café no Largo do Intendente, em Lisboa, onde conversamos, Wilson e Francisco contam como são assaltados no final de sessões na Bélgica ou na Holanda por pessoas intrigadas por aquela música que o Shazam, uma popular aplicação de identificação de canções, não reconhece. E existe o desconhecimento que redunda na falta de reconhecimento de quem temos tão próximo. Estamos rodeados de estrelas, de músicos revolucionários e extremamente populares. Estão mesmo ao alcance da mão. “Ainda há pouco me avisaram que o ZéZé Di Nha Reinalda, um grande cantor cabo-verdiano, esteve aí a tocar nas ruas de Lisboa”, diz Francisco. “O Armando ‘Tite’, um dos maiores guitarristas de Cabo Verde, que acompanhou a Cesária Évora durante 15 anos, que encheu salas no mundo inteiro, pode estar às seis da tarde a tocar no Cais da Colunas. Faz parte da forma de viver a cultura”, explica Wilson. Pouco depois, Francisco conta que em certa noite de Afro-Baile nas Damas, no bairro lisboeta da Graça, um ex-ministro guineense decidiu interromper um concerto dos Djumbai Djazz. Apontando para o guitarrista Sidia Baio, que pertenceu aos históricos Super Mama Djombo, elogiou: “Este é o guitarrista mais inovador da música guineense dos últimos 50 anos”.

Os Djumbai Djazz serão a terceira edição da Celeste/Mariposa, depois de Chalo Correia e de um álbum, esperado até ao final do ano, de Julinho da Concertina, nascido em Santiago há 60 anos e um verdadeiro mestre do funaná. Quando os Djumbai Djazz partirem em digressão pela Europa para promover o disco, Sidia Baio não poderá acompanhar a sua banda. “Vive em Portugal há mais de trinta anos, mas ainda não está legalizado. Noutro país seria apoiado e preservado pelas entidades culturais”, lamenta Wilson. “É aqui que esta história deixa de ser só música”, acrescenta.

Os Celeste/Mariposa nasceram para reunir e divulgar a música que, defendem, devia ser reconhecida e apreciada como parte da nossa riqueza cultural. Planeiam, com o espólio reunido, editar compilações que preservem para a posteridade um passado a (re)descobrir. Tornaram-se editora porque, dizem, não tiveram outra hipótese. Há medida que iam descobrindo toda uma rede de músicos e a quantidade de música que têm por registar, fazê-lo impôs-se como uma obrigação: “Isto tem que ser gravado!”. E isto, o desvendar da história que passou, aliada à gravação da história que acontece neste momento, tem tanto de desejo melómano como de movimentação activista. Luta contra a hegemonia anglo-saxónica e centro-europeia em favor de uma verdadeira e democrática diversidade musical. Afirmação da música e cultura da África de expressão portuguesa como riqueza imprescindível, reconhecida e acarinhada não só pelas comunidades africanas e seus descendentes portugueses, mas por todos. Os Buraka Som Sistema, os Batida ou o sucesso da kizomba ajudaram a uma maior abertura, mas os Celeste/Mariposa querem mais: “o nosso trabalho é lançar as sementes para que um miúdo de 17 anos, tal como fica fascinado com Tame Impala, também fique fascinado com os [cabo-verdianos] Bulimundo e queira trabalhar aquele som”.

Entre as digressões ao estrangeiro, que vêm gerando interesse crescente, a montagem dos Afro-Bailes em clubes e festivais portugueses e os registos discográficos, os Celeste/Mariposa continuam, nove anos depois, o seu projecto de acção cultural com ginga irresistível. Próxima paragem, dia 2 de Setembro nas Damas. Refeição completa: passa a reportagem Racismo em Português, dos jornalistas do Público Joana Gorjão Henriques e Frederico Batista, Calu Moreira toca o funaná, Francisco e Wilson dão a música depois dele. Dancemos o Afro-Baile. Descubramo-lo. Já é nosso.

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