Estatuto do animal: eles não são coisas, podem ser um terceiro género

Diariamente, milhares de animais são abandonados, violentados e mesmo mortos às mãos de uma justiça que se esqueceu deles

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Waranya Mooldee/Unsplash

O "status" de coisa atribuído aos animais, marcadamente antropocêntrico, que ainda hoje subsiste na actual lei civil, determina que, na generalidade das sociedades, os animais ainda sejam encarados como algo sem valor intrínseco. Diariamente, milhares de animais são abandonados, violentados e mesmo mortos às mãos de uma justiça que se esqueceu deles.

De facto, impõe-se aqui a questão de saber que medidas poderão acabar definitivamente com esta realidade tão axtual e sem fim à vista. Não existirá verdadeiramente a necessidade — urgente! — de lhes reconhecer personalidade jurídica capaz de acautelar os seus direitos? Note-se que, hoje em dia, a maioria desses direitos apenas subsiste aliada à cada vez maior consciencialização individual de que os animais são serem sencientes, pelo que existe um sentimento cada vez maior de empatia e protecção para com eles, bem como uma subjacente reprovação por parte da sociedade quanto aos actos bárbaros muitas vezes cometidos contra eles.

Não devemos, contudo, olvidar a complexidade que tal pressuposto implicaria pois, se fizermos um juízo "ex-ante", recordar-nos-emos, com certeza, das milhares de espécies animais que existem. Será que todas as espécies estariam abarcadas nesta necessidade? A não estarem, qual seria o critério distintivo? Crê-se que quanto a esta última questão o critério resida, maioritariamente, na capacidade de exteriorização do sofrimento que é maior nalgumas espécies do que noutras e nos conduz, inconscientemente, a criar uma maior sensibilização para com algumas delas, ainda que o sofrimento seja comum a todas e que as suas vidas tenham todas o mesmo valor.

O direito privado tem evoluído nas últimas décadas, criando leis de protecção animal de teor marcadamente progressista, reconhecendo a necessidade de descontextualização do regime das meras coisas em que se encontram ainda inseridos. Contudo, personificar o Direito dos animais implicaria que alguns negócios jurídicos que os envolvessem não pudessem ser realizados, assim como emergiria a necessidade de que lhes fossem atribuídos direitos personalísticos desnecessários — bastam-nos estas escassas linhas de pensamento para aferirmos acerca da dificuldade —, se não mesmo a  impossibilidade que seria atribuir direitos aos animais análogos aos do ser humano. Porquanto, a reciprocidade entre direitos e deveres nem sempre deve coexistir como condição da sua atribuição, pois implicaria a não consideração da principal função do Direito, que é a defesa desses mesmos direitos.

Estou certa de que não deve mais ser protelada a emergência em olhar os animais como seres de valor afectivo, deixando de parte o seu valor económico, pelo que a atribuição de um "tertium genus", por assim dizer, um terceiro género aos animais, seja, provavelmente, a alternativa mais adequada ao culminar de soluções jurídicas verdadeiramente proteccionistas.

Surge assim, inevitavelmente, um sentimento de esperança de que, a médio prazo, sejamos capazes de criar leis totalmente centradas na preocupação dos direitos animais, criando regimes que se coadunem de forma mais eficaz com as suas verdadeiras necessidades, pois é contraproducente que aos animais seja retirado o critério atributivo de coisas, se lhes continuar a ser aplicado o mesmo regime — que é o que realmente importa nesta questão — e não uma mera atribuição nominativa que apenas contribua para que lhes subsista uma incógnita jurídica.

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