Moçambique criou o seu primeiro laboratório de paleontologia

Instalações integram o Museu Nacional de Geologia de Maputo e servirão para preparar fósseis, formar cientistas moçambicanos e divulgar o património paleontológico do país – num projecto com portugueses.

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O geólogo moçambicano Zanildo Macungo no novo laboratório de paleontologia, em Marracuene, perto de Maputo PalNiassa/PaleoTech

Há pouco mais de dois anos e meio, a paleontologia de Moçambique foi notícia com o anúncio da descoberta do fóssil de um tio-avô de todos os mamíferos, perto do lago Niassa. Tio-avô, porque nós e todos os mamíferos do planeta não descendemos directamente nem dele nem do grupo a que pertencia, mas de um grupo irmão. Mas não é por isso que não é importante: é de um animal novo para a ciência, que tem 256 milhões de anos e que nos trouxe um vislumbre dos tempos ainda anteriores aos primeiros mamíferos no planeta. Quando se soube deste tio-avô dos mamíferos, Moçambique não tinha um laboratório de paleontologia. A situação mudou agora e o país passou a ter um laboratório onde os fósseis recolhidos no campo podem ser preparados e estudados.

Este laboratório de paleontologia, o primeiro de Moçambique, frisa um comunicado da equipa luso-moçambicana, fica na vila de Marracuene, nos arredores de Maputo. Faz parte do Museu Nacional de Geologia de Maputo. A sua criação foi possível graças a um projecto de investigadores portugueses e moçambicanos – o PalNiassa.

Iniciado em por cientistas portugueses e coordenado pelo Museu Nacional de Geologia de Maputo, o PalNiassa tem como objectivos o estudo dos fósseis de vertebrados de Moçambique e a preservação do seu património paleontológico, bem como a formação de jovens cientistas moçambicanos e transferência de conhecimento para o país, explica ao PÚBLICO o paleontólogo português Ricardo Araújo, do Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa. Da parte de Portugal participam ainda no PalNiassa outros três investigadores: Rui Martins (também do IST), Rui Castanhinha (do Museu da Lourinhã) e Gabriel Martins (do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras).

As expedições do PalNiassa à procura de fósseis começaram em 2009 e, desde então, já vão em meia dúzia – “e todos os anos toneladas de fósseis têm sido descobertos por paleontólogos portugueses e estudantes moçambicanos, sobretudo na remota província do Niassa”, acrescenta o comunicado.

É pois neste contexto que surge o laboratório de paleontologia, cuja construção e equipamentos foram pagos por Moçambique (“as instituições portuguesas contribuíram sobretudo para a formação e capacitação do pessoal que agora integra o laboratório”, especifica Ricardo Araújo). A sua criação começou a ser esboçada em 2012 e a construção arrancou no início deste ano. Foi a primeira fase, entre duas, que ficou concluída: a montagem de equipamentos, por exemplo para a preparação de fósseis, num laboratório que ainda é temporário, bem como a formação de quatro preparadores e investigadores moçambicanos. “Na segunda fase, o edifício onde o laboratório está montado actualmente será convertido numa residência para estudantes e estagiários, e o laboratório passará para o edifício principal, em construção”, explica Ricardo Araújo.

“Actualmente, o laboratório serve para formação de estagiários (da Universidade Pedagógica da Beira) e em breve vão fazer-se aulas práticas com a Universidade Eduardo Mondlane. Numa fase mais avançada, o laboratório será visitável e poderá ver-se os fósseis preparados e compreender o espectacular património paleontológico moçambicano. Pretende-se que este espaço sirva como centro de divulgação científica único neste domínio em Moçambique”, acrescenta o paleontólogo.

As características do clima de Moçambique foram tidas em conta. “Não é a mesma coisa montar um laboratório num clima temperado europeu ou num clima tropical com fortes chuvadas. Todo o laboratório está pensado para minimizar o risco de inundações que podem afectar esta região. Por isso, está elevado a cerca de um metro do solo, além de existirem outras especialidades técnicas que salvaguardarão a integridade dos fósseis moçambicanos.”

Terá uma sala para preparação química dos fósseis, outra sala para preparação mecânica, outra para fazer moldes e réplicas, outra para o armazenamento de blocos tirados do chão com os fósseis lá dentro vindos do campo e, por fim, uma zona de reservas, o local onde os fósseis são depositados quando ficam prontos para estudo.

Regresso à Pangeia

Neste momento, já tem equipamentos para preparar fósseis de crânios e de esqueletos quase completos de animais de que viverem há mais de 250 milhões de anos – quando na Terra só existia um único supercontinente, a Pangeia –, no que actualmente é solo moçambicano. Que equipamentos? “Por exemplo, existe um muito especializado para a paleontologia que foi adquirido pelo Museu Nacional de Geologia: os micro-martelos pneumáticos”, responde Ricardo Araújo. “Temos também uma workstation [computador] de ponta onde podemos trabalhar informação de tomografias, técnica que permite perscrutar o interior dos fósseis sem os destruir. É um laboratório que não fica nada atrás de outros, mesmo a nível mundial.”

Ora as tomografias (através de raios-X) para ver a morfologia interna dos fósseis, em todo o pormenor, já estão a ser aplicadas aos exemplares moçambicanos. Tal como, diga-se, está a usar-se nos fósseis de dinossauros da Lourinhã.

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O fóssil do Niassodon mfumukasi, um tio-avô dos mamíferos com mais de 250 milhões de anos ainda incrustado na rocha PalNiassa/PaleoTech

A este propósito, Rui Martins coordenou o PaleoTech, um projecto financiado em 50 mil euros, entre o início de 2014 e meados de 2015, pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) portuguesa. O PaleoTech quis estudar a evolução de fósseis de vertebrados e, ao mesmo tempo, preservá-los. Como estão inseridos na rocha, o que não deixa ver directamente as suas características morfológicas, e como “são únicos” e a sua destruição não é admissível, a equipa usou então “técnicas avançadas para a caracterização de fósseis, sobretudo de Moçambique. O que foi um contributo para o projecto PalNiassa, frisa Rui Martins. Apesar de o PaleoTech já ter terminado, acrescenta, a equipa continua a apostar neste trabalho.

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Visualização do fóssil do Niassodon mfumukasi com técnicas de tomografia PalNiassa/PaleoTech

Entre as técnicas de tomografia avançadas está a radiação gerada por equipamentos comerciais em empresas e hospitais, mas também a radiação dita de “sincrotrão” – poderosos feixes de raios-X gerados em enormes máquinas, por exemplo na Alemanha e em França, e que a equipa de Rui Martins tem usado. E assim obtém imagens 3D dos fósseis. “O feixe de raios-X obtido num sincrotrão tem um brilho milhões de vezes superior ao de um equipamento convencional usado nos hospitais. A resolução e o contraste são muito mais elevados e, deste modo, podemos observar os fósseis com muito mais detalhe”, explica Rui Martins.

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Crânio do fóssil Niassodon mfumukasi PalNiassa/PaleoTech

O estudo do fóssil do tio-avô dos mamíferos, ou Niassodon mfumukasi, é um exemplo do uso destas técnicas de tomografia avançadas, o que contribuiu para a sua descrição na revista Plos One, no final de 2013, como um género e espécies novos para a ciência.

Em estudo estão agora muitos outros fósseis, recolhidos também em Moçambique em afloramentos rochosos com 250 milhões de anos. “Todos têm muita importância porque permitem perceber as etapas evolutivas que precederam a linhagem dos mamíferos e, portanto, de nós próprios”, resume Ricardo Araújo. “Estes fósseis são sobretudo de terapsídeos, o grupo de animais que está na linhagem evolutiva dos mamíferos. Mas já foram descobertos espécimes de gorgonopsianos, de dicinodontes e de terocefalianos. Isto não são só nomes complicados: são animais – alguns predadores e outros herbívoros – que pastavam pelas florestas de savanas de Moçambique num mundo completamente diferente de há 256 milhões de anos.”

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