O burkini também pode ser liberdade?

O problema está longe de ser o burkini, que, ao contrário do que muitos erradamente depreendem, não é o equivalente a uma burka

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Stringer / Reuters

Uma nova polémica volta a despertar um debate há muito aceso na sociedade francesa: deve o Estado proibir o uso de burkini nas suas praias? A questão surgiu quando as autoridades de Cannes decidiram banir definitivamente estas roupas usadas por senhoras muçulmanas e multar as que persistiram.

Sendo complicado, e como é norma nestes casos, o assunto dá-se a muitos equívocos. Alguns sustentam-se nos recentes ataques terroristas para evocar razões securitárias — um evidente absurdo —, ou na necessidade de “responder na mesma moeda” às restrições a que as mulheres ocidentais são sujeitas em países de maioria muçulmana – uma espécie de “vingança ou desforra cultural”, baseada, ainda por cima, num pressuposto muito pouco rigoroso. Outros, como o próprio Aalam Wassef, no "Libération", forçam uma perspectiva geopolítica e defendem que o burkini representa a disseminação do wahhabismo, como se um grande plano tivesse sido urdido para que, no limite, até 2020, as praias de todo o mundo estivessem isentas de trajes menores. 

Mas, de todos os argumentos, irrita-me particularmente aquele que diz defender a proibição em nome da defesa das mulheres, oprimidas por um enquadramento cultural e familiar conservador e machista. É verdade que há muito a fazer a este respeito no universo muçulmano (como noutros), mas se no centro das preocupações estão os direitos das mulheres, mesmo admitindo que o burkini simbolizaria essa opressão, o que não é verdade, que vantagem trará impedi-las de ir à praia e remetê-las para o recato do lar? Não estará a ser este apenas um pretexto, ainda por cima sonso, para fazer aquilo que, no fundo, sempre se fez? – Ou seja: excluir a diferença e reduzir a diversidade. Caso contrário, é de estranhar como têm passado despercebidos outros casos, indiscutivelmente mais graves (ou verdadeiramente graves), no plano dos Direitos Humanos, como o rapto de duzentas jovens pelo Boko Haram e o seu casamento forçado, a escalada de violações na Índia, muitas das quais colectivas e a crianças, a mutilação genital feminina... Há razões evidentes para desconfiar desta súbita preocupação e se é certo que o mundo não tem sido um lugar seguro para as mulheres, também é que o problema está longe de ser o burkini, que, ao contrário do que muitos erradamente depreendem, não é sequer o equivalente a uma burka.

As proibições de roupa de praia têm já um longo historial. Para não ir muito longe nos exemplos, nos anos 50 e 60, o biquini também foi banido das praias portuguesas, o naturismo era clandestino e agora, mais do que institucionalizado, é promovido. Ainda bem. Mas nesse caminho que se fez e que é, no fundo, a nossa história do pós-guerra – é o Maio de 68, é a crise académica de 69... — está um valor profundo que não reside propriamente na simples redução progressiva da roupa com que andamos vestidos. Reside, isso sim, no apuramento do nossa ideia de liberdade, da convicção de que a comunidade não pode decidir sobre a forma como cada um de nós se relaciona com o seu próprio corpo, seja essa relação enquadrada pela fé, seja ela enquadrada pela "timeline" do Facebook. Da mesma forma que também não pode decidir sobre como e quem amamos, ou seja, que não pode decidir sobre qualquer assunto que diga exclusivamente respeito a cada um de nós, como é o caso da roupa, mais ou menos comprida, que vestimos na praia. Mesmo, ou principalmente, se ela tiver um significado religioso.

Talvez tenha passado demasiado tempo e nos tenhamos esquecido que o que foi conquistado não foram as escolhas em si mesmas — porque a liberdade não é nunca um atributo das coisas em si mesmas — mas sim a possibilidade de escolhê-las. E assim como o biquini, entre os anos 50 e 70, pelo modo transgressivo como foi utilizado, desafiou as estruturas reacionárias da sociedade e tornou-se uma forma de conquista da liberdade, o burkini, se for, como temo, totalmente banido, poderá desafiar, através da persistência do seu uso, uma Europa excessivamente convicta da justeza e da universalidade da sua matriz cultural e das suas práticas e tornar-se um objecto de resistência e luta pela liberdade das mulheres muçulmanas.

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