Natascha Kampusch: para "a rapariga da cave" a liberdade tem sido difícil

Libertou-se há dez anos. Muitos não gostaram de a ver ganhar dinheiro com a sua história. Acham que ainda esconde algo. Ela responde com mais um livro. E diz que anda a tentar aprender a integrar-se no século XXI.

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Natascha Kampusch, aqui fotografada em Viena, a 8 de Agosto, tem 28 anos. Um dos seus planos é estudar Psicologia ou Filosofia AFP PHOTO / JOE KLAMAR

Manhã de 7 de Março de 1998. Natascha Kampusch, 10 anos, ia para a escola. Um homem agarrou-a, meteu-a numa carrinha, levou-a para um compartimento sem janelas, insonorizado, que preparara para ela, debaixo da garagem da sua casa, em Strasshof, Áustria. Para tentar encontrar Natascha a polícia mobilizou centenas de agentes, sem sucesso. Até que na tarde de 23 de Agosto de 2006, já com 18 anos, ela fugiu. O seu raptor, Wolfgang Priklopil, apareceu nessa mesma noite morto, numa linha de comboio. A incrível história da “rapariga da cave”, assim ficou conhecida, correu mundo, inspirou livros e um filme. A liberdade, por fim?

“Tem sido muito difícil.” Dez anos depois da sua fuga, Natascha Kampusch resume deste modo, à AFP, como tem sido viver em liberdade.

Nos últimos dias, deu algumas entrevistas a propósito do livro que acaba de lançar na Alemanha e na Áustria — é o segundo, chama-se Dez Anos de Liberdade, o primeiro saiu em 2010 e chamava-se 3096 Dias, tantos quantos esteve presa. Foi um bestseller em vários países.

Natascha conta que ao longo deste tempo recebeu mensagens de ódio, chegou a ser insultada na rua, agredida até. Porquê?

Muitos não gostaram de a ver ficar famosa e ganhar dinheiro com a sua história, diz. Para além de que várias teorias das conspiração nasceram e se instalaram ao longo destes dez anos, relata a AFP, que a entrevistou em Viena, no início deste mês. Há quem ache, por exemplo, que Priklopil, um antigo engenheiro de telecomunicações, que tinha 44 anos quando ela fugiu, fazia parte de uma rede de pedofilia austríaca que envolvia pessoas muito importantes e que Natascha tem informações sobre essa suposta rede que não quer dar. Há quem acredite que Priklopil nem sequer se suicidou, como foi dito nas notícias, mas que foi assassinado pelos pedófilos.

Há também quem não perdoe a Natascha a falta de detalhes sobre o que viveu no seu cativeiro. “Claro que fui sexualmente abusada, mas o facto de já ter falado e escrito sobre isso não é suficiente.... algumas pessoas acham que tenho de recontar cada pormenor”, escreve no seu novo livro, segundo os excertos divulgados nos últimos dias.

Há quem a tenha acusado mesmo de mentir sobre o que realmente aconteceu. “Fugi de um inimigo e de repente tinha dezenas de inimigos, milhares até em alguns fóruns da Internet”, disse numa apresentação do livro em Berlim, relatada pelo jornal The Times.

Depois, desde os primeiros dias de liberdade que a forma como por vezes falava de Priklopil suscitava incómodo. No seu primeiro comunicado à imprensa (quando do mundo inteiro chegavam pedidos de entrevistas), a 28 de Agosto de 2006, ela disse: “Por vezes, simbolicamente falando, ele era o meu apoio e, outras vezes, aquele que me batia (...). Na minha perspectiva a sua morte não era necessária (...). Foi parte importante da minha vida e, por isso, sinto alguma tristeza por ele.”

Propostas de casamento

Por muito que especialistas de diversas áreas tenham lembrado que durante oito anos, a maior parte dos quais confinados a uma cave de seis metros quadrados, ela só teve Priklopil na sua vida, que tanto a alimentava e lhe lia histórias, como abusava dela, numa relação profundamente complexa, as palavras de Natascha nem sempre foram aceites. As pessoas precisam de “supostos monstros como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal que vive nelas”, escreve ela agora em Dez Anos de Liberdade. "Precisam de fotografias de masmorras em caves para evitar ver toda a violência que está escondida atrás de uma fachada burguesa e atrás de todas essas casas com as frentes bem cuidadas, com jardins."

A presença constante de jornalistas nos primeiros tempos (muito tempo) não a fazia sentir “nem segura, nem protegida” e, “nesse sentido, a sociedade tornou-se numa segunda prisão”, contou noutra entrevista, ao jornal Kurier. “Ao fim de seis anos de liberdade não ousava sair de casa, porque já não suportava ser vista como um animal estranho.”

Natascha, que tem hoje 28 anos, acredita também que, para algumas pessoas, foi uma espécie de “provocação” a forma como ultrapassou o cativeiro, sem vestir o papel de vítima, papel que recusou sempre. Teve um programa de televisão (durou pouco), assinou contratos vários, para livros, entrevistas, filmes, dedicou-se ao voluntariado, nomeadamente no Sri Lanka, estudou línguas, ficou com a casa de Priklopil — que se recusa a vender, porque não quer que ela seja transformada numa espécie de "parque de diversões". Vive num apartamento no centro de Viena e vai a Strasshof duas vezes por mês para tratar de “coisas práticas”, como manter o jardim.

Na última década, também recebeu cartas de apoio, claro — e propostas de casamento de desconhecidos — e manifestações de carinho, muitas, que continuam a existir. Mas nem todas lhe parecem agradar da mesma forma. “Muitas pessoas abraçam-me na rua. Não é fantástico, mas tudo bem, se é isso que querem...”

“Uma grande fã do século XX”

Em Junho perdeu uma batalha legal: queria impedir a publicação de mais um livro sobre a sua história, escrito por um jornalista e um antigo investigador da polícia, que revela detalhes sobre os vídeos feitos por Priklopil onde ela aparece, segundo foi noticiado, criança ainda, num dos casos “nua e desnutrida”, a ser castigada e humilhada. Um tribunal alemão entendeu, contudo, que as cenas descritas são “comparáveis” a outras que ela própria descreveu no seu primeiro livro.

A normalidade custa a conquistar. No seu primeiro comunicado aos media, há dez anos, dizia que, apesar de tudo, não tinha a sensação de ter perdido algo de substancial (“Pelo contrário, há coisas que evitei, como o tabaco e o álcool”, disse na altura). Porém, com o tempo ganhou outra perspectiva. “Não tive fundações sobre as quais me construir, não socializei com outros jovens, com pessoas da minha idade”, afirma agora.

Quer estudar Psicologia ou Filosofia, ainda não se decidiu. Gosta de astrologia e de fotografia. Adora música e cinema. “Sou uma grande fã do século XX.” Mas ainda é jovem — enfim, diz que “não se sente nem jovem, nem velha”, sente-se “fora do tempo”, mas, por muito que se sinta “fora do tempo", tem de conviver com jovens da sua idade, que são também do século XXI. “Tenho de me integrar neste século.”

 

 

 

 

 

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