Para que não seja tão fácil saltar

Natália é uma das mães que assinaram uma petição para que passasse a existir uma rede de protecção anti-suicídios na 25 de Abril, como foi decidido para a ponte de São Francisco, na Califórnia. Para quem perdeu alguém, a travessia mudou. Só há pouco tempo Natália consegue passá-la de olhos abertos.

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Daniel Rocha (arquivo)

Natália Fernandes lembra-se bem de si criança, tinha sete anos, de lhe terem posto o vestidinho branco de cerimónia porque era ocasião especial, de o pai ter vestido fato e gravata, e de terem visto cortar uma fita a um senhor fardado que se chamava Américo Thomaz e era o Presidente da República. Estava inaugurada a Ponte Salazar. “Era impressionante, uma obra grandiosa. Lisboa era moderna”, lembra-se de pensar.

Tem outras memórias da ponte, dela com o filho de dez anos, com a família, a fazerem a meia-maratona, a pé em cima do tabuleiro. Depois, vivendo no Barreiro (margem Sul do Tejo), Natália Fernandes passava debaixo dela sempre que ia de barco para o trabalho, no Terreiro do Paço. Quando a atravessava de carro pensava: “Tem uma vista tão bonita, lindíssima, à noite vê-se até Cascais”. “A ponte era uma ligação.” A ponte mudou. O Tejo mudou.

“Trânsito lento na ponte. Acidente na ponte.” Natália está atenta à rádio e já aprendeu a destrinçar os verdadeiros acidentes dos que não o são. Quando é em cima do tabuleiro e não se explica mais nada, quando não se fala em colisões, em viaturas envolvidas, é porque foi um suicídio. Tem a certeza. É outra pessoa que fez o mesmo que o filho.

“Mano, vai buscar o nosso carro à ponte 25 de Abril e abre o meu computador”, foi a mensagem que o seu filho de 19 anos enviou ao irmão. No computador estavam três números de telefone, o de Natália à cabeça. Por isso, foi o primeiro para onde a senhora brasileira que viu tudo, porque seguia num carro atrás, ligou. “Conhece o Carlos Guilherme, é que ele atirou-se.” “Eu sou a mãe”. A senhora não sabia, ficou perturbada, pediu muita desculpa, lembra Natália.

Talvez se naquele sítio onde o filho saltou houvesse uma barreira ele não tivesse saltado há seis anos e sete meses. Ou talvez se ali houvesse uma barreira ele tivesse escolhido outra forma de pôr fim à vida, ou outro sítio. Não sabe.
Natália Fernandes, que entretanto se tornou numa das dirigentes da associação Laços Eternos-Associação de Apoios a Pais em Luto (número 919 299 462), é uma das pessoas que têm o seu nome na Petição Ponte segura-pelo fim dos suicídios na ponte 25 de Abril.

Conheceu outras mães de filhos que se suicidaram na ponte, percebeu que não estava sozinha. Pouco se fala dos suicídios na ponte, sabe que é para evitar fenómenos de imitação, mas custa que pareça que não existem.

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Natália Fernandes é uma das dirigentes da associação Laços Eternos-Associação de Apoios a Pais em Luto: o seu filho suicidou-se atirando-se da ponte rui gaudêncio

A ideia de criar uma petição “para alertar as autoridades e a sociedade civil” foi de Sofia Gama. O texto do documento saiu-lhe a quente, a 19 de Junho de 2014, poucos dias depois de o amigo Ivan ter decidido pôr fim à vida, “voando”, disse ele. Quando escreveu o texto, o seu corpo ainda não tinha aparecido no Tejo. Demorou um mês. “Gostava que mais ninguém estivesse na beira daquele rio a velar como se de uma sepultura se tratasse”, escreveu.

Ivan morreu a uma quinta, a polícia disse à família que nessa semana já tinham saltado quatro pessoas. “E se forem quatro por semana?”, pergunta Sofia Gama.

Os números sobre os suicídios que ocorrem na ponte não são, por norma, divulgados. A porta-voz oficial da Lusoponte responde apenas “nunca nos pronunciaremos sobre esse assunto”. Já o porta-voz da Polícia de Segurança Pública responde que “são situações muito raras. Pouco mais de uma dezena por ano de tentativas”, que, nalgumas situações, acabam por não se concretizar.

Sofia Gama teve a ideia de criar a petição ao passar na ponte depois da morte de Ivan. Reparou nas guardas de segurança que existem nas extremidades da ponte, antes do tabuleiro começar, e pensou, “porque não continuam? Era importante proteger aquele lugar. É tão fácil saltar.”

“A colocação de redes que impeçam que a berma do tabuleiro seja alcançada, tal como foi colocada no viaduto Duarte Pacheco, é essencial”, escreveu.

No caso de Ivan terá havido “uma pessoa que parou o carro, que falou com ele, que lhe disse para não fazer aquilo. Ele ignorou”, conta Sofia Gama. Mesmo que houvesse uma câmara de vigilância a detectá-lo antes de saltar, também não teria chegado a tempo. Só com uma barreira. “É mais difícil subir uma rede, ter de a galgar. Cria-se um obstáculo. Ele não deu um tiro na cabeça porque não tinha uma arma.”

A escolha do método tem muito a ver com “a acessibilidade”, admite Sónia Cunha, a coordenadora do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC), do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). A responsável acredita que uma solução como a que propõe a petição poderia reduzir os casos naquele sítio, o que não quer dizer que essa diminuição depois se reflectisse nos números de suicídios, nota.

É difícil falar sobre o suicídio, sobre o suicídio na ponte, mas também há estudos que nos dizem que não falar sobre o problema pode ser negativo. Não é positivo haver “uma conspiração de silêncio”, tanto em termos públicos como privados. É preciso saber como falar sobre suicídio, tanto em termos públicos como no contacto pessoal.

Saber como falar

A morte do Ivan não foi noticiada. “Todos os dias eu ia pesquisar, até para procurar mais casos.” O relato de suicídios pelos media é evitado. Há uma regra tácita em vários órgãos de comunicação social que faz com que se evite noticiar suicídios. A Organização Mundial de Saúde (OMS) criou mesmo directrizes sobre a forma como os media devem abordar o assunto.

Porque estão comprovados os riscos de efeitos de imitação, a OMS diz que “devem ser evitadas descrições detalhadas do método. A cobertura dos suicídios pelos meios de comunicação tem impacto maior nos métodos do que na frequência”, lê-se. “Alguns locais, como pontes, penhascos, e edifícios altos, tradicionalmente associam-se com suicídios. Publicidade adicional acerca destes locais pode fazer com que mais pessoas os procurem com esta finalidade.”

Também é preciso saber como comunicar com as pessoas com pensamentos suicidas. Talvez a pior coisa a dizer a uma pessoa nestas condições é “não fales mais nisso”, refere Sónia Cunha, do INEM. Talvez seja contra-intuitivo, mas quando uma pessoa quer contar que se quer suicidar e quer mesmo explicar como o vai fazer o ideal, para a ajudar, é deixá-la falar.

Deve escutar-se “sem julgar, não dar opinião, não dizer se é correcto ou não”. E tentar fornecer alternativas aos problemas que parecem sem solução e que levaram a pessoa ao limite (dívidas, divórcios, doença), explica Sónia Cunha. Estes são os princípios que regem a abordagem psicológica destes casos.

Nas idas do CAPIC ao terreno não está especificado quantos pedidos de ajuda envolvem suicídios. Nos 9123 pedidos de ajuda telefónicos – a linha telefónica 112 tem um psicólogo 24 horas por dia – sabe-se que a maioria são chamadas relacionadas com o suicídio: 2125 relacionados com comportamentos suicidários, 926 com pensamentos suicidários sem consumar tentativas, 590 foram intenções de suicídio com decisão tomada e 539 foram mesmo tentativas.

O INEM não faz qualquer registo dos suicídios pelo local onde ocorrem, por isso não se sabe quantos ocorrem nesta ponte, ou noutras. Há alguns estudos que investigaram esta atracção. “A ponte surge como algo libertador associado ao elemento ar e água, quase como um ritual de libertação e purificação”, que contrasta com a ideia de que “o suicídio é algo condenável”, explica Sónia Cunha.

1600 suicidaram-se em São Francisco

Sofia Gama percebe as razões porque os media evitam falar dos suicídios na ponte mas custa-lhe que pareça que não existem.

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"Devia haver um estudo sobre os suicídios na ponte”, refere Natália Fernandes daniel rocha

A petição apenas foi subscrita por 608 pessoas. “Só assina quem tem casos próximos”, uma vez que “não se ouve falar, não choca, não há imagens, não há histórias”, diz Sofia Gama, que defende que as estatísticas devem existir, tal como acontece com a ponte de São Francisco, a ponte gémea da portuguesa, na Califórnia.

“É preciso alertar que há aqui um problema e que pode haver uma forma de o minimizar. Existe, não há volta a dar”, sublinha Sofia Gama.

A ponte de São Francisco, a Golden Gate, tem estatísticas, estão reportados casos de pessoas de vários pontos da América que viajam até lá para se suicidar. Desde que foi inaugurada, em 1937, suicidaram-se cerca de 1600 pessoas, incluindo 33 no ano passado, referiu este ano o porta-voz da ponte ao jornal local San Francisco Chronicle.

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Golden Gate, a ponte de São Francisco, "gémea" da 25 de Abril Andy Kuno/ REUTERS

Há décadas que se discutia a criação de uma barreira anti-suicídio, que foi aprovada em 2014 e que é suposto estar construída em 2018, mas este ano ainda continuam as discussões em torno dos custos orçamentais das obras.

Alguns pais de filhos que se suicidaram na Golden Gate foram os grandes activistas desta medida.

“Parte da ponte tem um gradeamento, para proteger a parte de baixo. Porquê é que o resto não tem uma rede?”, refere Michelle Pires, uma mãe cujo filho também se suicidou. “Se calhar, se se falasse e se fizesse mais qualquer coisa... Devia haver um estudo sobre os suicídios na ponte”, diz, por sua vez, Natália Fernandes.

O que muda na ponte

Para quem perdeu alguém na ponte ela nunca voltará a ser igual. Nem o rio. Sofia Gama sente que é como se a ponte simbolizasse “a partida”, é como “se a ponte não existisse, eles ainda cá estavam”. Evita passá-la. “É muito forte, é pesado, quase como se estivesse a visualizar o que aconteceu”, sobretudo quando vai a passar exactamente no sítio onde sabe que Ivan, que tinha 38 anos e “um historial de vida complicado”, deixou o carro estacionado.

Vivendo na margem Sul, Natália Fernandes tem de atravessar para Lisboa, “seja lá como for”. Nos primeiros cinco anos era de olhos fechados, com o marido a conduzir. Só há pouco tempo a consegue passar de olhos abertos. Se tiver de ser Natália a conduzir até Lisboa contorna o obstáculo indo pela Vasco da Gama.

Apanha o barco a olhar sempre em frente, como se a embarcação não passasse por baixo da ponte. Dantes olhava para cima, “era bonita, era agradável passar e olhar para ali. A ponte passou a ser símbolo de morte”.

O Tejo “era paz, tranquilidade. Para mim o Tejo mudou, ficou triste. Nunca mais será bonito”, ou “talvez vá desvanecendo.” Já lá vão seis anos.

Passa-se por muitas fases, muitas reacções. Michelle Pires lembra-se de um dia, pouco depois de o filho ter saltado, ter sentido uma urgência de a atravessar a conduzir, sozinha. “Apesar da dor toda precisava de passar no último local onde o meu filho esteve, uma aproximação ao Guilherme.”

Começou a passar a ponte mais vezes para ir ao psicólogo a Lisboa, para tentar perceber o que se tinha passado com o seu filho único, aquele jovem de 21 anos, estudante de Medicina, desportista, alegre, com uma infância feliz, alguém a quem tudo corria, aparentemente, tão bem.

Como sozinha não conseguia perceber, começou a levar ao psicólogo os amigos do filho, para serem entrevistados. Talvez guardassem algo que a mãe desconhecesse. Nunca se chegou a uma conclusão definitiva. “Foi um acto de impulso” mas “tinha de estar deprimido”.

Aos 50 anos, com um novo companheiro, Michelle Pires decidiu voltar a tentar engravidar. Teve de fazer tratamentos e conseguiu.

Dois meses antes de a gravidez chegar ao seu termo decidiu tirar fotografias ao quarto do Guilherme, tal como ele o tinha deixado, intocado, desde há cerca de quatro anos, quando o filho se sucidou. Conseguiu dar alguns objectos que lhe pertenciam, do desporto, do boxe e do ténis, mas a maioria das coisas transferiu-as para o sótão. Conseguiu finalmente desfazer o quarto de Guilherme porque era preciso, não tinha mais nenhum quarto para a nova bebé.

Voltou a atravessar a ponte 25 de Abril para ter a filha do lado de Lisboa, há seis meses. Chama-se Matilde. Talvez um dia a ponte volte a ser bela.

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