“A Senhora Clap” vai bater palmas transparentes no Rio de Janeiro

Livro português sobre a arte de bater palmas foi adaptado para teatro e tem estreia marcada no Rio de Janeiro para 3 de Setembro. “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”, de Marta Duque Vaz, integra o Plano Nacional de Leitura e inspirou uma pianista brasileira

Marta Duque Vaz tem 46 anos e sempre soube que o seu lugar era a aplaudir os outros Nelson Garrido
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Marta Duque Vaz tem 46 anos e sempre soube que o seu lugar era a aplaudir os outros Nelson Garrido
Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Tem cabelo ruivo, colecciona cadernos de apontamentos e dedica-se a um objecto de estudo em tudo invulgar: os aplausos. A razão está justificada logo na primeira página do livro que tem o nome desta “aplausologista”: “A Senhora Clap bate as duas mãos uma na outra, num encaixe, ritmo e som absolutamente perfeitos. Para além disto, a Senhora Clap, quando bate palmas, abre muito os olhos. Tanto, tanto, que se vê tudo dentro dela, até ficar totalmente transparente do lado esquerdo.” É isso mesmo: neste livro infanto-juvenil escrito por Marta Duque Vaz, a protagonista é uma antropóloga fascinada pela arte de bater palmas, fundadora da “aplausologia”. “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos” (Planeta), ilustrado por Alexandre Esgaio, integra o Plano Nacional de Leitura e inspirou uma peça de teatro no Brasil, com estreia marcada para 3 de Setembro.

Marta Duque Vaz está sentada de costas para o mar, numa esplanada de Matosinhos, a contar a história do primeiro livro que escreveu e que em poucos dias vai ser encenado no Rio de Janeiro. Uma especialista em “aplausologia”, uma autora portuguesa que se quer sentir escritora e uma pianista brasileira trabalharam juntas para que “O Tratado da Senhora Clap” possa estrear-se no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema. E Marta Duque Vaz conta tudo isto ainda incrédula, consciente do quão inusitada esta narrativa — verídica, ainda por cima — pode parecer.

Três actos separados por décadas marcam a vida desta jornalista de 46 anos e conspiram para a viagem da Senhora Clap até ao Brasil. Desde a escola primária — quando declinou um pequeno papel numa peça amadora — que Marta sabe o que é preferir aplaudir do que ser aplaudida. “Desde os oito anos que bater palmas é o meu lugar de maior conforto”, diz, recordando o primeiro marco. O segundo aconteceu 30 anos mais tarde, em 2008, quando optou por deixar o lugar de gestora de produto de uma marca para ter mais tempo para escrever. Arriscou e ganhou “outra qualidade de vida” na revista de economia social de uma organização não-governamental que agora edita. Do tempo nasceu “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”, livro publicado em Maio de 2015 que teve nos sobrinhos da autora “o público primeiro”.

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“O Tratado da Senhora Clap” estreia-se no Teatro Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, a 3 de Setembro e fica em cena até dia 28

O terceiro acto teve lugar no Facebook, perante o cepticismo de Marta. A pianista Elenise Bandeira de Mello tropeçou na página da Senhora Clap, ainda antes de o livro ser editado, e deixou um comentário. “Em pouco tempo conheci a gestora da página e, em menos tempo ainda, fizemos amizade. Ainda num tempo mais rápido, ela confiou-me o manuscrito do livro, enviando pelos correios. Quando dei por mim estava em Portugal”, resume a brasileira de 53 anos, por e-mail. Assistiu ao lançamento da obra por Skype e surpreendeu todos ao insistir na ideia de adaptar a história ao teatro do outro lado do Atlântico. Marta não tem dúvidas: “Hoje percebo que o nosso encontro era inevitável.”

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Os discípulos da Senhora Clap, os aplausologistas, contam a história do livro de Marta Vaz

"Amar é bater palmas"

Além de pianista e professora, Elenise Bandeira de Mello pertence a um colectivo artístico (As Penélopes, Cantadoras de Histórias) e tem como missão democratizar a música clássica. A adaptação da obra de Marta “permite tirar a música erudita dos grandes teatros e dos fraques, democratizando-a”, escreve Elenise. No livro, a Senhora Clap é convidada para o aniversário de uma caixa de música que toca Erik Satie. Aplaude, uma vez mais, até ficar tão transparente “que podia ver-se o seu canal lacrimal do lado esquerdo, onde nasciam pequenas lágrimas de emoção”. As “palmas de cristal” da protagonista neste episódio específico inspiraram a adaptação, na qual “um grupo de aplausologistas, discípulos da Senhora Clap, contam a história do livro”. “O Tratado da Senhora Clap”, em cena até 28 de Setembro, tem direcção de Cadu Cinelli, dramaturgia de Francisco Abreu e um elenco composto por Clara Serejo, Livia Izar, Bruno Trindade e Vinícios Domingues. Até 22 de Agosto está online uma campanha de “crowdfunding”, na plataforma brasileira Benfeitoria, para cobrir os custos iniciais de produção do espectáculo. O objectivo é atingir os 11.800 reais (cerca de 3250 euros) até à próxima segunda-feira. Em cima da mesa está, também, a hipótese de a peça ser apresentada noutras cidades brasileiras e, até, em Portugal. 

“A função da arte dá-se quando, ainda que por instantes, somos deslocados do nosso tempo e no nosso espaço”, considera a pianista. “E a Senhora Clap ensina-nos que amar é bater palmas.” Este é, aliás, um dos vários apontamentos que a fundadora da “aplausologia” anota no seu diário de campo, ferramenta da antropologia a piscar o olho à formação académica da própria autora, na mesma área. Nas linhas dos cadernos aprendem-se outros ensinamentos: “Só devemos bater palmas quando nos apetece”, “todos são capazes de bater palmas, até os mais preguiçosos” ou “as palmas de uma pessoa que nos ama valem pelas de uma plateia”.

Depois da obra infanto-juvenil (que afinal é para todas as idades), Marta espera um dia conseguir sentir-se escritora e o romance em que está a trabalhar mantém o sonho vivo. Para chegar aqui, esta famalicense que tem no Porto “o coração feito cidade”, como faz questão de lembrar, vendeu camisolas, serviu à mesa, foi jornalista e trabalhou em marketing. Sempre a escrever para a gaveta até que o “Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes”, da autoria da Senhora Clap, foi mais forte e chegou ao Brasil. “É muito doido.”

Em Ipanema, não sabe ainda como vai reagir ao ver a história da Senhora Clap num palco. Ela que tanto adora teatro e que até incluiu um episódio no livro para homenagear Eunice Muñoz, a sua actriz portuguesa de eleição. “É mais do que qualquer transparência”, sorri, comovida.

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