A esperança da audácia

Lembra-se das sanções? Aquelas que nos iam pespegar? As que nos ocuparam tão intensamente os últimos meses?

Pois, essas. Não se deu por nada, mas tiveram há exatamente uma semana uma morte sossegada, quando o Conselho acabou por aceitar a recomendação da Comissão para que fossem anuladas as sanções a Portugal e Espanha.

Essa não foi, contudo, a notícia europeia mais interessante da última semana. Naquele mesmo dia a Comissão aplicou uma outra multa, de três mil milhões de euros, a seis construtoras de camiões, incluindo a alemã Daimler e a sueca Volvo, por terem constituído um cartel para manipularem os preços de venda dos camiões e desta forma repassarem aos consumidores os custos do cumprimento das exigências ambientais na UE.

Como seria de esperar, esta outra multa não teve títulos de primeira página nem abriu telejornais portugueses, apesar do seu valor poder ser cem vezes maior do que a (hipotética) sanção que poderia ter aplicada a Portugal. E é pena, porque ela nos permite ter uma melhor visão do contexto europeu sem isso significar, certamente, defender a UE em todas as ocasiões ou apoiar os seus arranjos institucionais atuais. Quando a Comissão Europeia multa cartéis e monopolistas faz aquilo para que foi criada; quando se intromete nos orçamentos dos estados-membros está a aceitar um papel recente que nunca lhe deveria ter sido atribuído. No entanto, como uma parte dos críticas à UE nos últimos tempos têm sido na linha de “queria vê-los fazer o mesmo a uma empresa alemã”, vale a pena notar quando a coisa acontece.

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A pergunta fundamental a fazer sobre a União Europeia é a seguinte: ela dá-nos mais poder sobre as nossas vidas? Creio que muita gente diria que em tempos a resposta foi positiva — com a liberdade de circulação, com alguma redistribuição através dos fundos estruturais e com alguns aspectos de cidadania europeia — mas que a UE dos últimos anos tem contribuído para a impotência e frustração que muitos sentimos perante o futuro. Aceitemos essa resposta como boa.

Esta realidade, porém, esconde uma outra em que os cidadãos têm mais poder do que imaginam. Não há muitas regiões do globo em que um cidadão individual possa levar uma companhia como a Facebook ao Tribunal de Justiça da UE (depois de uma longa via sacra pelos tribunais nacionais, como aconteceu com o jovem austríaco Max Schrems) e ganhar o caso. Pela primeira vez, também, grupos de cidadãos em França e na Alemanha tentam levar a Volkswagen ao mesmo tribunal, no que seria na prática um primeiro exemplo de “ação coletiva” europeia. O acesso à justiça europeia e a democratização das instituições da UE são as reformas de que precisamos para recuperar o poder que perdemos e até ganhar aquele que nunca tivemos: o de vergar as multinacionais através da cidadania europeia. Difícil, mas possível.

Sem democratização das instituições europeias, o poder dos estados tenderá a significar o reforço dos estados e clientelas que já são mais fortes. É por isso que a estratégia de Portugal deve passar pela democratização da UE e pela criação de uma verdadeira Democracia Europeia. É o que os cidadãos querem e o que mais favorece o nosso país. Passada a novela das sanções, espera-se que haja mais audácia nesta frente.

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