A boçalidade do mal

Trump é só a versão americana de uma tendência global, a que privadamente costumo chamar de "chutòbaldismo": a vontade irresistível, coletivamente assumida, de chutar o balde.

Donald Trump foi, desde o início da sua aventura nestas presidenciais americanas, um desafio aos limites da credibilidade política. As regras que valem para os políticos normais — um mínimo de factualidade, uma imagem de responsabilidade nas coisas do mundo, uma certa decência no trato dos eleitores e uma hipocrisia educada na relação com os adversários — ele rasgava e espezinhava. De cada vez que o fazia, o eleitorado respondia com entusiasmo; ou pelo menos, fazia-o com fervor uma parte suficiente do eleitorado para lhe dar a nomeação entre os republicanos e uma hipótese razoável de ganhar as eleições gerais.

Os EUA costumavam ser um país onde uma gaffe era suficiente para enterrar um candidato. Há uns anos, Howard Dean, o favorito numas primárias democratas, viu a sua candidatura implodir por causa de um grito mal colocado junto a um microfone. Com Trump, as regras costumeiras deixaram de valer. Mas Trump é só a versão americana de uma tendência global, a que privadamente costumo chamar de "chutòbaldismo": a vontade irresistível, coletivamente assumida, de chutar o balde. De ver o circo pegar fogo. De sacudir as coisas para ver o que dá.

O chutòbaldismo pode ter, aqui ou acolá, uma justificação intelectual. Como aconteceu no caso do "Brexit" contra os defeitos bem reais da UE. Ou no caso de tantos demagogos com sucesso contra uma classe política desinspiradora. Ou agora no caso do EUA, num suposto confronto entre "americanismo e globalismo", como alegou Trump no seu discurso perante a convenção Republicana. São justificações que parecem plausíveis; mas ao rasparmos a película superficial nada daquilo se aguenta. Não foram os muitos problemas da globalização que impediram os EUA de ter um sistema nacional de saúde, de controlar a posse de armas ou de combater a desigualdade e o racismo sistémico no país. Foram as próprias instituições estado-unidenses, do Congresso comprado pelo dinheiro ao Supremo Tribunal que deixou o dinheiro comprar o Congresso. Chutar o balde é uma forma de garantir que as coisas vão continuar a ser como são.

Durante a interrupção desta crónica, vá lá, Trump parece finalmente ter ultrapassado os limites da credibilidade política, e a sua candidatura entrou numa queda livre que era já há muito devida. Mas não estou ainda suficientemente confortável para descontar desde já o poder do chutòbaldismo. Mesmo que ele não seja suficiente para levar Trump à Casa Branca — uma possibilidade aterradora para todo o habitante consciente do planeta — o chutòbaldismo é uma das forças mais potentes na política mundial neste ano de 2016, e só ganha mais força de cada vez que o tentamos justificar. O chutòbaldismo vive do simples fascínio destrutivo de ver o que acontece a seguir a chutar-se o balde. Os seus sentimentos de base são o aborrecimento, a frustração e a raiva, e podemos encontrá-los tanto numa classe que se julgava privilegiada como noutra que se julga injustiçada.

A seguir a cada boçalidade de Donald Trump, o mal — o racismo, a agressividade, o desprezo pelos direitos humanos e o estado de direito democrático — banaliza-se. A questão que sobra é quem ficará para apanhar os cacos.

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