Turquia, onde já só se pode ser jornalista com medo

Escrever “não é mesmo que usar armas contra as pessoas” mas às vezes parece. Desde o golpe de Estado falhado de dia 15 de Julho, já foram emitidos 108 mandados de detenção contra jornalistas e encerrados dezenas de jornais, canais de televisão e estações de rádio.

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Protesto junto a um tribunal em Março, depois de o Governo ter assumido o controlo do jornal Zaman, o maior do país, próximo de Gülen Kursat Bayhan/Reuters

Oya não vai a manifestações e não é porque não esteja aliviada com o fracasso do golpe. “Tenho medo. Desde Gezi, tenho medo”, diz, esclarecendo que nem se aproxima da Praça Taksim por estes dias. A explicação impõe-se só por um motivo: segundo Oya, jornalista de 35 anos que há muito tempo desistiu de escrever sobre política neste país “de doidos”, essa sua ausência tem sido “notada”, diz, à conversa numa movimentada esplanada da gigantesca rua Bagdat, a terceira maior rua de compras do mundo, no lado asiático de Istambul.

Recapitulando. Na noite de 15 de Julho, sexta-feira, à hora do jantar, houve uma tentativa de golpe de Estado falhada na Turquia. Em Ancara e Istambul morreram mais de 230 pessoas (na maioria civis) que saíram à rua em resposta ao apelo do Presidente, Recep Tayyip Erdogan, apelo que este fez através de FaceTime em directo na CNN Turca, antes do canal independente ser tomado pelos golpistas. Por trás da conspiração, diz Erdogan e Oya, assim como a maioria dos turcos, acredita, esteve Fethullah Gülen, líder de um movimento religioso, exilado nos Estados Unidos.

“Eles que são religiosos que se entendam, o problema é deles”, diz Oya, que agora se dedica à crítica de televisão e, sem saber, há uns anos teve um programa num dos canais ligados a Gülen. O que isso significa é que podia estar a ser detida, como dezenas de colegas de profissão. Acusados ou listados como suspeitos membros do movimento gulenista, muitos limitaram-se a assinar colunas de opinião num título que pertencia a algum dos seus próximos. Os jornais identificados com Gülen não eram os únicos onde se admitem opiniões críticas a Erdogan e ao seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder desde 2002), mas quase. Acontece.

Erdogan e o Governo reagiram ao golpe lançando purgas massivas. Há dezenas de milhares de pessoas despedidas ou suspensas. Mais de 12 mil foram detidas. Muitos dos detidos são militares, juízes, professores, académicos, médicos ou membros da função pública que já antes estavam referenciados como gulenistas. Outros, serão apenas críticos. Outros ainda, não se sabe e vai demorar a saber.

“O que os advogados nos dizem é que estão a fazer perguntas aos detidos do género ‘a que escola é que os teus filhos vão?’, ou, ‘em que banco é que tens conta?’, ‘estudaste no estrangeiro?’… Ou seja, eles estão a tentar encontrar uma ligação a Gülen ou a uma instituição ou empresa ligada ao seu movimento”, descreve o investigador da Amnistia Internacional no país, Andrew Gardner. “E isso não é o mesmo do que ter participado no golpe.” Quanto aos jornalistas, Gardner lembra que o cerco vem de longe. “Há jornalistas nesta lista que eu sei que nem sequer têm simpatias por Gülen, quanto mais terem estado envolvidos no golpe”.

“Esta” lista tinha 42 nomes de jornalistas que estavam a ser procurados, isto dias depois do golpe. Entretanto, já foram emitidos pelo menos 108 mandados de detenção contra jornalistas (dezenas estão detidos), 20 sites foram bloqueados e 131 meios de comunicação social e editoras foram encerrados, incluindo 45 jornais, 23 estações de rádios e 16 canais de televisão.

Muito perigoso

Veteranos comentadores políticos; activistas que assinam textos de opinião; advogados que são, ao mesmo tempo, jornalistas e já tinham defendido curdos ou simplesmente outros jornalistas perseguidos na justiça. “Claro que tenho medo, todos temos medo. A arbitrariedade é total, é muito perigoso”, confessa outro jornalista. “Eu não tenho nada a ver com Gülen. Desisti de escrever sobre política para não ter chatices, e mesmo assim sei que me podia acontecer qualquer coisa. Então se eu aceitei apresentar um programa num canal dele e nem sabia…”, afirma Oya.

Actualmente, Oya trabalha a partir de casa. Mas há três anos estava numa redacção não longe da Taksim, o epicentro de Istambul, colada ao Parque Gezi. É por isso – e pelos amigos que na altura foram detidos – que hoje nem se aproxima de nenhum ajuntamento. O Gezi é o parque que Erdogan quis demolir e que alguns habitantes de Istambul ousaram defender numa concentração que foi brutalmente reprimida pela polícia; a reacção do AKP provocou uma escalada e uma vaga de protestos por todo o país como a Turquia nunca tinha visto. Houve gente a perder olhos, médicos perseguidos por terem assistido manifestantes, muitos canhões de água e balas de borracha e crianças mortas e Erdogan, cada vez mais polarizador e autoritário (na altura era primeiro-ministro).

“Eu sei que há gente que repara que eu não vou para a rua”, diz Oya, sobre as concentrações que se têm repetido na Taksim e em muitas praças do país, uma homenagem às vítimas dos golpistas estranhamente festiva com distribuição de água, iogurtes ou sumos, e sanduíches, ecrãs gigantes, muita música e milhões de bandeiras da Turquia, mas também de Erdogan e do “pai” dos turcos, Mustafa Kemal Atatürk, fundador da República. “Proprietários dos jornais”, por exemplo, responde sobre quem notará a sua ausência. 

A democracia?

Sem duvidar que o golpe tenha existido (há quem defenda que foi encenado”, a jovem descreve-o como “muito estranho” – “Onde é que se viu, militares a dispararem contra pessoas em vez de deterem o Presidente e o Governo?”. Na Turquia, com três golpes de Estado militares e um pós-moderno (sem tropas na rua), nunca se tinha visto. Mas não é só por ter medo de gás lacrimogéneo que a jornalista não sai à rua em festa. “O que é que eles estão a celebrar? Na rua, quase todas as noites, não percebo. A democracia?”

Quem defende que o AKP está a fazer o que é preciso para livrar o país dos gulenistas, e há gente absolutamente insuspeita a fazê-lo, dá como exemplo o facto de Erdogan ter falado na CNN – um canal dito de oposição, que se manteve crítico face ao poder e já se envolveu em problemas por isso. Mas a verdade é que o golpe que não chegou a ser mergulhou o país numa espécie-de-psicose-nacionalista, que é tanto a dos conservadores religiosos que votam AKP como o dos opositores do CHP (sociais-democratas) ou dos ultranacionalistas de extrema-direita do MHP.

Os curdos e o partido que os representa – o HDP – têm ficado à margem. Para começar, enquanto Erdogan tem convidado os restantes partidos com representação parlamentar e os seus apoiantes para participar em comícios como o “dos mártires e da democracia”, no domingo, o terceiro maior partido do país é ignorado. O que faltou na megamanifestação de domingo, em Istambul, disse o líder do HDP, Selahattin Demirtas, foi “a própria noção de democracia”. Os curdos, pela vida a que são sujeitos, desconfiam de tudo e de todos e não embarcam facilmente em ondas de celebração.

Mártires e heróis

As críticas dos líderes da União Europeia ajudam à festa. Quem acabou de ver compatriotas morrer debaixo de tanques, atingidos por bombas largadas por aviões de combate no Parlamento ou numa esquadra de polícia está mais sensível do que habitualmente à reprovação externa. O heroísmo dos “mártires” caídos a 15 de Julho, mais os 2000 feridos, muitos em cadeiras de roda, traz audiências e vende jornais, quer se defenda a resposta governamental ou não. Seja como for, por estes dias, mais vale calar e são muitos os motivos para isso.

“Eles não foram detidos pelo seu trabalho jornalístico”, é, em resumo a defesa de Erdogan e do AKP para as detenções, escreve numa coluna no diário Hurriyet, Özgür Korkmaz.

Korkmaz defende que “escrever colunas ou artigos não é o mesmo do que usar armas contra as pessoas” e que “jornalismo tendencioso, e muitas vezes mau, não pode ser um crime; é algo que deve ser punido pelos eleitores”. Citando o próprio Erdogan, que há dias se disse “triste por ter falhado em ver a face verdadeira desta organização terrorista muito antes”, numa referência o ex-aliado Gülen, o colunista pergunta: “Como é que eles podem ter a certeza que os jornalistas não foram enganados e ajudaram de forma consciente o grupo ilegalizado?”.

Ainda há jornais seculares (Cumhuriyet ou Sözcü, por exemplo) que são conotados como da oposição, e continuam a praticar um jornalismo independente. Mas isso não apaga os abusos cometidos contra as dezenas de jornalistas e colunistas detidos sem acusação formal, às vezes dias até serem ouvidos por um juiz, proibidos de sair do país ou em fuga.

Importante, lembra Korkmaz, era que “a Justiça não fosse nem uma ferramenta de pressão na sociedade nem uma ferramenta de vingança”. Ser jornalista, hoje na Turquia, é um acto de coragem, ou então não passa de um exercício de renúncia consciente aos princípios e à própria natureza da profissão. 

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