À procura da misteriosa história da jangada de canas de S. Torpes

Atribuem-lhe uma origem fenícia mas as suas raízes podem até estar em épocas mais recuadas. Mas também há quem diga que estes singulares barcos de cana têm uma explicação mais prosaica: Em meados do século passado, alguém terá copiado o modelo “por influência duma fita de cinema”.

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Destroço na areia DR
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Exemplar no Museu de Setúbal DR

A Festa do Equinócio que o Museu de Sines organizou em Março, na Praia de S. Torpes, assume-se como um dos derradeiros gestos simbólicos para manter presente, pelo menos no imaginário das crianças, a jangada feita de canas, que nos anos 70 do século passado, ainda era usada pelos pescadores das praias a sul de Sines na apanha de marisco e na pesca da sardinha. Mas mesmo no momento em que o seu desaparecimento se anuncia, e se prepara a sua candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO (mais uma), continua por definir uma cronologia que identifique cientificamente a origem deste tipo de embarcação de fabrico rudimentar na costa de Sines, nomeadamente em S. Torpes.

A arqueóloga Joaquina Soares, admite que a sua origem conceptual “pode remontar às últimas sociedades de caçadores-pescadores-recolectores semi-sedentários, que há 8000-7500 anos povoaram significativamente o Alentejo Litoral”, em especial o troço de S. Torpes a Porto Covo, e sulcavam o mar próximo em busca da maior parte do seu sustento.

Vítor Torres Mendonça, outro dos estudiosos que se debruçaram sobre a origem e função das jangadas de canas explicou num texto publicado pela Câmara de Sines que os utilizadores contemporâneos deste tipo de embarcação “podem ser descendentes dos comerciantes – gregos, fenícios, púnicos – que fundaram colónias a sul do cabo de Sines” ou então “dos servos que trabalhavam no latifúndio de Santa Celarina” que deu origem à Lenda de S. Torpes.

O autor equipara a jangada ao modelo de embarcações que ainda estão presentes no rio Nilo, feitas de papiro, modelo esse que diz ter sido “adoptado pelos Fenícios que o usaram nas ribeiras e lagoas perto das praias mediterrânicas onde se estabeleceram”.  

Em S. Torpes, a cana é o material usado na construção do pequeno barco. “É leve e a sua fibra não retém água”, explica Torres Mendonça, salientando o elemento conceptual que lhe garante a capacidade para flutuar que lhe é facultado pelos elementos cilíndricos e ocos, equivalentes a “câmaras-de-ar que suportam, com facilidade, o peso de um pescador” que nela pode remar de pé.  

Recuando ao final dos anos 70, o etnógrafo e arqueólogo Octávio Lixa Filgueiras, considerou, durante uma comunicação que apresentou no Centro de Estudos de Marinha, a jangada de S. Torpes como “um problema de arqueologia naval”.

Depois de ter percorrido a costa de Sines para se documentar, junto dos construtores e utilizadores do “estranho exemplar”, concluiu que a embarcação tinha tanto de “interessante como de complicado”. Prudente, reconheceu que “nada permitia emitir qualquer proposta de filiação, de relacionação cultural e muito menos apontar para uma cronologia” sobre a verdadeira origem da jangada de canas.

Justificou as cautelas depois de obter “algumas desconcertantes referências” colhidas durante os inquéritos que realizou e que o obrigaram ”a redobrados cuidados e exigências” no tratamento das informações, que interpretou como um “quebra-cabeças para quem tente desfazer o fio à meada”. Relatando a parte “mais insólita” dos elementos que obteve, o arqueólogo destaca o depoimento do pescador João Cadeireiro recolhido no início dos anos 70. Disse ele que foi nos anos 40 que se começaram a usar (a sul de S. Torpes) flutuadores de cortiça para construir pequenas jangadas. Mas após a eminência de um desastre com a repentina subida de maré, “verificou-se que, afinal, as canas produziam o mesmo efeito, de flutuador", com vantagem sobre a cortiça, para além de facilitar a sua amarração. A partir de então, “adoptaram-se as jangadas de canas”, garante João Cadeireiro.

Inspiração cinematográfica

Um outro pescador veio entretanto contribuir para o aumento da confusão quando explicou a Lixa Filgueiras que as jangadas feitas com canas, começaram a ser construídas nos anos 50 do século passado “por influência duma fita de cinema…”

Pareceu estranho ao investigador que, como por mero acaso, se “criasse”, ou “recriasse”, um tipo de jangada tão peculiar a partir duma fita de cinema. Em reforço desta dúvida surgem-lhes outros depoimentos que vinham contrariar uma tal influência.

Assim, alguns pescadores de Vila Nova de Milfontes garantiram-lhe que as jangadas de cana eram utilizadas “na passagem do rio Mira, acima de Odemira”. Aliás, João Cadeireiro acrescentara, na sua entrevista a Lixa Filgueiras, que, no Guadiana, perto de Elvas, “também havia jangadas de canas”. E a área da sua distribuição estender-se-ia à Ribeira de Nisa (antes da construção da barragem de Cedillo no rio Tejo em território espanhol), onde teriam sido usadas jangadas de juncos constituídas por molhos.

A complicar as referências históricas que estariam na origem da estranha embarcação, Lixa Filgueiras recebe ainda a indicação, por confirmar, que o aparecimento destas rudimentares formas de navegação estaria relacionado com o pretenso plano de povoamento da zona sul de Setúbal com africanos, ordenado pelo Marquês de Pombal. A sua presença num território então preenchido de arrozais, em virtude da enorme mortalidade provocada pelo paludismo, que não está documentalmente comprovada, seria o veículo para a introdução nas ribeiras do Sado e posteriormente na costa de Sines de embarcações semelhantes às que usariam na sua terra de origem.

Até ao interesse manifestado por Lixa Filgueiras, a jangada de S. Torpes era totalmente desconhecida dos investigadores. Após o trabalho de investigação que realizou nos anos 70, e que não teve continuidade, o arqueólogo tirou uma conclusão óbvia: o eventual interesse pela continuação do seu estudo deveria prosseguir através de análises comparativas com outras jangadas das mais diversas geografias. E deu exemplos: jangada de caniço (chitatar) dos Achirimas de Moçambique, a bimbá, do Lobito, jangadas da Tasmânia, jangadas de juncos do Oristano, na Sardenha, entre muitas outras.

Mais recentemente, o historiador António Martins Quaresma realçava no seu livro: Porto Covo: o Iluminismo no Litoral Alentejano que, uma “embarcação” muito sumária, denotando “extraordinário arcaísmo”, a jangada de canas, foi também utilizada na costa de Sines.

Também ele concluiu que a sua origem, cronologia e possível filiação “não se afiguram claras” dando como exemplo o registo da estatística da pesca da Delegação Marítima de Sines referente ao período entre 1913 e 1922, onde “não se menciona qualquer jangada, no capítulo correspondente, ainda que esta informação possa não ser decisiva”.

Mas então que estranho “engenho de navegar” é este que alia primitivismo, simplicidade e economia de meios? O investigador observou vários exemplares quando se deslocou a S. Torpes e da sua observação ficou o seguinte testemunho: “De planta alongada, quase em ogiva, a sua estrutura básica é constituída por dois feixes ou molhos de canas que se colhem nas ribeiras próximas de S. Torpes. Depois são amarradas por meio de cordas e arames, até formar uma espécie de estrado. O conjunto fica sustido por dois pares de travessas de madeira, cada par fixado pelas faces opostas. A parte de baixo do fundo é recoberta por uma camada simples de canas, que funciona como a sola de um sapato. As canas dos feixes laterais, situadas aos lados e em baixo, bem como as que recobrem totalmente a parte inferior do fundo e se sobrepõem às travessas de baixo, são mais grossas a fim de resistirem melhor ao choques e ao desgaste”.

Para fazer uma jangada com pouco mais de 2 metros de comprimento utilizam-se perto de 60 canas, todas da mesma espessura, de preferência. Se o pescador cuidar bem da sua jangada, esta pode durar até 20 anos. A sua conservação é simples e barata: basta enterrá-la na areia.

O investigador contou-as em 1972 e havia uma dezena de jangadas. Em 1975 estavam reduzidas a metade. Serviam na pesca da sardinha com redes e de outros peixes com aparelhos de muitos anzóis que chegavam a ter linhas entre 100 e 1000 metros de comprimento. Na pesca da sardinha, eram empregues duas jangadas em paralelo e pescavam até uma profundidade de 12 braças (23 metros).

Joaquina Soares recorda que no início dos anos 70 do século XX, o campo dunar que orla a linha de costa entre a baía de S. Torpes e Porto Covo, no concelho de Sines, era habitado por uma comunidade piscatória que vivia em “habitações construídas com materiais perecíveis e explorava pequenos hortejos instalados nas depressões intradunares”. Obtinha o pão de que se alimentava por troca directa com peixe. O barco de canas era o seu principal instrumento de trabalho e de conflito com as autoridades. “As jangadas não têm matrícula e a Guarda Fiscal não gosta, mas são mais seguras, nem precisam de velas”, argumentava naquela época João Cadeireiro, garantindo que aquele tipo de embarcações era muito mais eficiente: “Cortam melhor o mar e, enquanto se viram vinte botes, vira-se só uma jangada”.

Hoje o seu uso é apenas residual e apenas em pescarias ocasionais. A sua observação está apenas garantida no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, onde está exposto um exemplar da jangada, e ainda se podem ver destroços nas areias da Praia da Oliveirinha.

Assim, as jangadas de cana estão em vias de desaparecer, restando muito poucos exemplares. E se não houver uma intervenção de salvaguarda do mais significativo exemplo de património etnográfico do concelho de Sines deixará de haver quem o saiba construir e utilizar. Para tentar contrariar este destino, o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, adiantou que o projecto de candidatura da pesca artesanal de São Torpes, a Património Imaterial da Humanidade, será apresentado à Comissão Nacional da Unesco em 2017.

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