E um bombo rebentou na aldeia

O novo disco de Cristina Branco tem tudo para ser soberbo. E no mais pacato dos festivais surgiu uma estrela, Tiago Pereira, homem do bombo. No Bons Sons, a música é portuguesa, feita para portugueses, e isso nota-se.

Tiago Pereira em concerto
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Tiago Pereira em concerto Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Cristina Branco Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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O festival Bons Sons envolve toda a aldeia e o artesanato é uma das componentes mais visíveis desse trabalho em comunidade Cortesia: Festival Bons Sons/Pedro Sadio
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A bailarina e coreógrafa Vera Mantero apresentou o seu trabalho feito na serra algarvia, Os Serrenhos Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Indignu Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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A aldeia de Cem Soldos transforma-se para acolher o festival e os habitantes recebem-no com gosto Cortesia: Festival Bons Sons/Pedro Sadio
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Best Youth Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Foram várias as estratégias para enfrentar o calor durante o dia Cortesia: Festival Bons Sons/Pedro Sadio
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O público tem vindo a crescer de ano para ano neste festival que vai já na décima edição Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Adufeiras do Paúl Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Grutera Cortesia: Festival Bons Sons/Carlos Manuel Martins
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Em Cem Soldos os festivaleiros são de todas as idades e há muitas actividades para crianças Cortesia: Festival Bons Sons/Pedro Sadio

E de repente da audiência veio um grito: “Agora a sério, Tiago”, disse um rapaz, meio no gozo. O homem em cima do palco riu-se e o moço do público insistiu: “Mostra o que sabes.” Tiago fez-lhe a vontade: pegou nas baquetas e, numa impressionante demonstração tanto de técnica como de instinto, arrancou ao seu bombo um som redondo, profundo, imparável, que mais parecia produto de um par de baterias e de um baixo. Segundos depois, o público explodia em dança – e no fim o homem do bombo sairia dali debaixo de uma ovação do tamanho da de um atleta olímpico acabado de quebrar recordes.

Isto é o Bons Sons: um festival tão íntimo que ao início da noite de sábado eram as crianças que ocupavam o lugar junto às grades, que noutros festivais é tomado pelas groupies. Crianças que dançavam ao ritmo diabólico de chulas, crianças que eram convidadas para o palco – ou pelo menos Tiago chamou um rapaz mais afoito, que uma vez lá em cima não se fez rogado e aos primeiros compassos entregou o corpo ao ritmo frenético do bombo e desatou a incitar o povo a dançar.

Tiago é Tiago Pereira, homem do bombo e principal acontecimento da tarde de sábado no Bons Sons, na aldeia de Cem Soldos – e este acontecimento é elucidativo dos valores do festival: aqui só actuam músicos portugueses, conhecidos ou desconhecidos, e Pereira (não confundir com o homónimo fundador de A Música Portuguesa a Gostar dela Própria), que toca bombo com a fúria com que um condenado foge à polícia ou um capitalista aos impostos, foi a grande surpresa do dia, a estrelinha nascida num ponto quase invisível do mapa. Tiago Pereira, que faz parte dos Roncos do Diabo e nunca tocara a solo na vida, exibiu – munido de apenas um bombo – um imenso arsenal de truques e uma inolvidável capacidade de comunicação que lhe permitiu pôr todo o público a fazer percussão no próprio corpo e a entoar coros, por forma a “engordar” os temas. O tom descomprometido das canções casa com o Bons Sons; a beleza das melodias e a imponência dos ritmos idem.

Percebe-se porque é que tanta gente se dirigiu para ali, o palco em frente da igreja, ao fim da tarde: não há concertos sobrepostos no Bons Sons e a música era boa; mas porque é que as pessoas vieram aqui, à pequena aldeia de Cem Soldos, a escassos quilómetros de Tomar, onde moram apenas 600 pessoas e durante o ano não acontece muito?

No transfer de Tomar para Cem Soldos, que a organização fornece, encontrámos um rapaz de 25 anos que descreve o festival em termos efusivos: “Eu fiz voluntariado aqui em 2012. Não é um festival como os outros. Não é criado apenas para fazer dinheiro. Não tenho de fazer palhaçadas para ganhar brindes. Não há a presença maciça de marcas. Por ser na aldeia e por ser organizado por uma associação sem fins lucrativos, é muito mais familiar.” Desde esse ano, David, que hoje é jornalista no Dinheiro Vivo, voltou sempre. O Bons Sons começou em 2006 e realizou-se a cada dois anos até 2014 – desde então tornou-se anual. Hoje há 300 voluntários a trabalhar no festival, 65 dos quais externos (como David há quatro anos).

De portugueses para portugueses

No ano passado, dizia-nos Luís Ferreira, fundador e director do Bons Sons, estiveram aqui 35 mil pessoas; este ano esperam mais e entre a organização comenta-se que o público está mais variado e vai da beta ao hippie. “Isto está a ficar conhecido”, comentava um dos organizadores.

Conhecido entre quem? Não é fácil traçar um perfil dos visitantes. Não é um festival para hipsters, como o Primavera, ou para indies na casa dos 40. Mas a organização tem a preocupação de saber quem é o seu público e um dos seus elementos, a sociólogoa Daniela Craveira, tem levado a cabo inquéritos nos últimos três anos de modo a perceber quem são as pessoas que aqui vêm e porque é que vêm.

Quando nos falam de Daniela, vamos à procura dela e rapidamente a encontramos – encontra-se tudo depressa, aqui. A aldeia está fechada durante quatro dias e tudo se desenrola à volta do Largo do Rossio, onde se concentram os palcos, um par de restaurantes e cafés, onde hoje a bica custa 75 cêntimos: a associação pode não ter fins lucrativos, mas os cafés têm.

“Há duas coisas que trazem as pessoas”, diz Daniela, passando a citar os seus inquéritos. “A oportunidade de descobrir música portuguesa e o boca-a-boca, a recomendação dos amigos.” O perfil do visitante ainda é vago e não inclui denominações como hipster, hippie ou beto. “Deparámo-nos com dois perfis extremos: um público mais novo, entre os 16 e os 25 anos, que vem de fora e frequenta vários festivais; e um público mais velho, dos arredores.” O que explica as muitas crianças que se vêem.

Tiago Pereira será então um exemplo do que as pessoas procuram: um músico desconhecido que se revela de forma imperial, com uma reinvenção imaginativa de um som conhecido, a música tradicional portuguesa. Os cartazes do Bons Sons sempre foram compostos exclusivamente por músicos nacionais, não apenas por questões orçamentais mas também por ideologia: a associação da aldeia quer que os portugueses descubram a sua terra, pelo que o festival que organiza serve para que os portugueses descubram outros portugueses. Faz sentido.

Talvez por isso uma estrela como Cristina Branco possa sentir-se à vontade para chegar ao palco e começar o seu concerto, como aconteceu no sábado, não com os seus êxitos mas antes com temas de Menina, o disco que editará em Setembro e que contará com composições de Filho da Mãe, Cachupa Psicadélica e outros. Cristina mudou: está tudo mais intenso mas menos pesado, mais rápido mas terra a terra, mais lúdico, menos existencial. Entre a sua entourage diz-se que Menina foi um disco criado para “acabar de vez com a tragédia” que era central na voz da fadista (?) e de facto aqui não há desgraça, antes pequenas pérolas musicais, particularmente bem recebidas.

A opção de Cristina foi diferente da dos Deolinda, que chegaram já a noite de sábado ia longa e optaram por uma espécie de best of. Mesmo quem não seja apreciador tem de reconhecer que hoje esta rapaziada é uma máquina de palco. O centro das canções reside nas guitarras, que vão do dixieland a África num estalar de dedos (ou de cordas) e passeiam por cima dos espamos rítmicos que impulsionam a dança. E à frente Ana Bacalhau conduz a audiência. A fundação dos Deolinda pode ser a música popular portuguesa, mas estas canções são pop: uma melodia, um ritmo, um gancho que agarre o povo.

Eram duas horas da manhã quando a aldeia foi dormir. Mas foi dormir, como dizia Luís, o fundador, com “o ego em cima e capacitada de que sabe organizar coisas”. E é sobre isso que é este festival.

Texto corrigido às 11h35 de 15 de Agosto: A formação de que Tiago Pereira faz parte chama-se Roncos do Diabo e não Roncos do Inferno

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