Caminho de Santiago: é ele que nos faz a nós

No Caminho vivemos principalmente o Eu, mas com atenção ao Outro. O esforço, o medo, as dúvidas, o entusiasmo, o cansaço extremo, a preocupação com quem está mais fraco

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Rodrigo Viana de Freitas

Seja qual for motivação. Seja qual for a crença de cada um. Concentremo-nos apenas no momento da decisão e na persistência com que se percorrem 200, 500, 900km de terra, monte, estradas sem fim. Quem já fez o Caminho de Santiago entende o alcance destas palavras. Da inspiração que provoca. Da boa energia que se recebe. Principalmente das pessoas com quem nos cruzamos. Das histórias que ouvimos.

De todos os caminhos existentes, o Francês é o mais emblemático. É também um dos mais longos. São cerca de 800km com partida em Saint Jean Pied de Port, nos Pirenéus franceses, com destino à Catedral de Santiago de Compostela. Cerca de 30 dias a pé; outros tantos a cavalo; 8 a 10 de bicicleta. Só em 2015, dos mais de 260 mil peregrinos que chegaram a Santiago, mais de 65% escolheu o Caminho Francês, embora com início em diferentes locais.

O Caminho de Santigo é um concentrado de vida, repleto de metáforas, onde encontramos um pouco de tudo. Basta sabermos olhar e ouvir. Ler o que vivemos. Do esforço à recompensa, das tentações do atalho ao prazer de não nos desviarmos. Conhecemos gente fantástica que deixamos de ver e com quem temos reencontros emotivos e lidamos com quem não chegamos a conhecer mas que passa a ter connosco uma inexplicável ligação. “Buen Camino!” – repetimos vezes sem fim como se fosse a primeira.

No Caminho vivemos principalmente o Eu, mas com atenção ao Outro. O esforço, o medo, as dúvidas, o entusiasmo, o cansaço extremo, a preocupação com quem está mais fraco. Levamos ao limite a componente física para podermos testar os limites da componente mental. E passamos a conhecer-nos melhor. E a conhecer melhor quem nos acompanha.

Tal como a vida, o Caminho Francês divide-se em tês partes distintas. A primeira é a física. O crescimento. A passagem dos Pirenéus até às vinhas da Rioja. A segunda é a mental. A vida adulta. Das planícies quase intermináveis. A terceira é a espiritual. A experiência. Pelas montanhas galegas que nos levam a Santiago. Em todas elas preparamo-nos para as etapas seguintes. De todas elas guardamos fragmentos que nos acompanharão para sempre.

Ao longo do Caminho, em pequenos santuários, em montes esquecidos, em muros e vedações, percebemos algumas das motivações individuais de cada um. Vemos homenagens a quem já partiu. Vemos promessas por quem está doente. Ninguém pede aquilo que quase sempre na vida quotidiana todos ambicionam: melhores casas, melhores carros, mais dinheiro. O Caminho é mais profundo e faz-nos concentrar naquilo que realmente importa.

É claro que há quem faça o Caminho por mera diversão ou para dar um colorido relacional à sua vida. Mas a maioria leva o percurso mais a sério. Aproveita cada pedra, cada monte para dar a si próprio aquilo que a vida insiste em nos tirar: tempo, silêncio, introspeção. E a oportunidade cada vez mais rara de vivermos com Menos para sermos Mais. Porque uma coisa é certa: ninguém faz o Caminho. É ele que nos faz a nós.

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