The Get Down: a história dos miúdos que nos deram o hip-hop

Baz Luhrmann aventurou-se numa série de televisão e num mundo que não é o seu: Nova Iorque nos anos 1970, quando o hip-hop ainda nem se chamava hip-hop mas nas ruas já se rimava e dançava.

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A história da série é centrada neste grupo de amigos Netflix
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Ezequiel (Justice Smith) é apaixonado por Mylene (Herizen Guardiola) Netflix
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Jimmy Smits Netflix
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Giancarlo Esposito Netflix
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A história não é verídica mas podia ser. Está tudo aqui. O hip-hop antes de ser hip-hop. A luta dos miúdos que cresceram num dos bairros mais duros de Nova Iorque, South Bronx, naquela que terá sido uma das épocas mais difíceis nos Estados Unidos, a de 1970.  Uma cidade que dançava ao som do disco e que começava a descobrir os beats e as rimas daquilo que na década de 1980 viria a ser o hip-hop. The Get Down chega esta sexta-feira ao Netflix. É a primeira série televisiva do excêntrico realizador australiano Baz Luhrmann. Levou dez anos a acontecer mas Luhrmann não podia estar mais feliz com a estreia, diz ao PÚBLICO. No ano em que Hollywood discutiu fervorosamente a falta de diversidade, o realizador dá-nos a história de uma comunidade marginalizada com uma mão cheia de novos talentos.

Não deixa de ser estranho, no entanto, que esta história tão americana seja contada por um australiano, que nem nos Estados Unidos vivia. “Pensei muito nisso antes de me envolver, mas a verdade é que Nova Iorque atraiu-me sempre. Tudo o que era bom estava a sair de Nova Iorque”, conta, sentado à mesa com vários jornalistas europeus, explicando que a dada altura acabou mesmo por trocar a Austrália pelos Estados Unidos. Admite: não viveu nada do que hoje nos dá nesta série. “Não é a minha história, mas sempre me intrigou de onde viria tanta criatividade.” Sem se aperceber, pesquisa aqui, pesquisa ali, conversa com este e com aquele, e deu por si imerso na história do hip-hop. “E pensei: o que posso fazer para contar esta história?”.

Assim chegou a Nelson George, conhecido jornalista norte-americano e uma das vozes mais respeitadas da comunidade negra, também autor de várias obras sobre a cultura hip-hop.  Mas não só. O realizador rodeou-se de alguns dos mais importantes protagonistas do movimento, como Grandmaster Flash – se o hip-hop é hoje um dos géneros mais influentes da música popular, ele teve um papel crucial. E foi produtor da série que também o representa, interpretado por Mamoudou Athie.

“Acho que tenho a maior base de dados sobre este período, tal como fotografias. Percebi que se queria fazer, por exemplo, a biografia de Flash, não podia ser só uma pessoa a contá-la. E achei que tínhamos de ter a história destes personagens reais a partir de um grupo fictício. O resultado é que quando os vemos pensamos que aquele podia mesmo ser o verdadeiro Flash. Aqueles miúdos podiam ter existido”, diz, em resposta ao PÚBLICO. The Get Down é "muito realista”, garante, embora tenha um lado extravagante, sempre presente nos seus trabalhos. Lembremo-nos de O Grande Gatsby, Austrália ou Moulin Rouge. “Tive de amplificar algumas coisas mas tudo tem uma referência factual.”

Para Nelson George, esta é a grande mais valia da série. “Quando o Baz me veio com esta ideia de ter jovens no centro da trama que não fossem conhecidos, eu soube que isto ia funcionar”, diz, ao lado do criador da série, que realizou o primeiro dos 12 episódios – nesta sexta-feira, no entanto, ficam disponíveis apenas seis, uma vez que o Netflix decidiu dividir a série em duas partes (a segunda ainda não tem data anunciada mas espera-se que chegue em 2017). “Esta história tinha de ser contada a partir do ponto de vista destas pessoas, pessoas como eu nos meus vintes, que não fizeram o que muitos americanos acham que fizeram”, explica.

Tudo sobre uma época

Esta é portanto a história de um grupo de miúdos do Bronx que estão a descobrir a vida como quaisquer adolescentes, dos amores de uma vida às saídas à noite. A diferença é que tudo acontece num lado feio e pouco glamoroso de Nova Iorque. Um bairro pobre, marcado por violência e caos.

Estamos em 1977. Ezekiel (Justice Smith), cujos pais morreram tragicamente e é criado pela tia, é um bom miúdo que põe em palavras a história da sua vida. Escreve tudo o que sente, em especial o amor por Mylene (Herizen Guardiola), que sonha ser a próxima Donna Summer, mas está presa pelo conservadorismo do pai (Giancarlo Esposito, um dos poucos veteranos da série, ao lado de Jimmy Smits). Quando Ezekiel percebe, com a ajuda de Shaolin Fantastic (Shameik Moore), que o que escreve se pode aliar à música, a sua vida ganha um novo sentido. A partir daí seguem juntos, como MC e DJ, respectivamente – e Grandmaster Flash a guiá-los.

Shaolin dá a conhecer uma Nova Iorque inimaginável a Ezekiel e ao seu grupo de amigos, os irmãos Kipling: Ra-Ra (Skylan Brooks), Boo Boo (Tremaine Brown Jr.) e Dizzee (Jaden Smith). Uma Nova Iorque que aproveita os edifícios abandonados para grandes festas até de manhã.

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“Foi preciso treinar muito para entrar naquela mentalidade dos anos 1970, tens de saber mesmo muito sobre a época para realmente viveres aqui”, começa por dizer Jaden Smith. Para o jovem actor, a presença de pessoas como Nelson George, Grandmaster Flash ou a grafitter Lady Pink – na série Jaden Smith é um aspirante a graffiter – fez toda a diferença. “Fomos mesmo educados naquilo”, diz, destacando “toda a música da série, tal como a coreografia e o guarda-roupa”. “É muito inspirador e faz com que queiras ver mais.”

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Jaden Smith Netflix

Figurinos e cenários têm o dedo da parceira habitual de Luhrmann, a sua mulher Catherine Martin, que é também produtora executiva da série. Em entrevista ao PÚBLICO, a vencedora de quatros Óscares conta como trabalhar em The Get Down foi diferente de tudo o que fez. “Sempre que desenhas algo que tem um certo período ou um brilho algo espectacular, já tens meio caminho feito, porque vai ser sempre mais apelativo”, diz, dando os exemplos de O Grande Gatsby e Moulin Rouge. “O desafio aqui foi ter uma paleta limitada para trabalhar, o que me obrigou a focar na personalidade do personagem. É preciso ver que estamos a lidar apenas com calças, t-shirts, pólos, camisolas e um par de sapatilhas.” Foram precisas muitas horas de pesquisa, muitas imagens de arquivo. “E voltei às séries e aos filmes daquela altura, como o Taxi Driver. Procurámos que a série fosse muito precisa.”

Tanto que o próprio nome tem em si um significado real, destaca. “O get down é a parte da música que todos querem dançar.” Por outras palavras: é o termo usado por Flash para descrever aquilo que hoje são os breaks, explica a produtora, destacando também a a colaboração “preciosa” do rapper Nas na parte musical. “É como se ele fosse o Ezequiel mais velho e estivesse a contar a sua história. Ele cresceu também neste período, foi uma grande fonte de conhecimento”. Mas apesar da importância do rap de Nas, nota, a série não é um musical, pelo menos no sentido clássico do termo. “A música está tão bem integrada na série que é parte da narrativa, parece muito natural. Pessoas que possam ter aversão a músicas nos filmes ou nas séries não terão um problema aqui. De todo.”

Negros mas não escravos

A crítica parece para já rendida, embora o primeiro episódio levante algumas dúvidas. Escreve o Hollywood Reporter que a adesão à série depende do quanto se gosta do trabalho de Baz Luhrmann, destacando, no entanto, que a história melhora à medida que se vai desenvolvendo e o traço do realizador desaparece. Toda a sua reconhecível excentricidade de efeitos está no primeiro episódio. Mas Luhrmann tem a perfeita noção disso. Foi ele aliás a alertar, em Londres, que o primeiro episódio pode ser confuso “porque é uma introdução àquele mundo”. “Só depois teremos o desenvolvimento dos personagens”, diz. Apesar de apenas ter realizado o arranque da série, acompanhou todo o processo, não fosse este o seu projecto: “o maior de sempre”, nas suas próprias palavras.

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Baz Luhrmann com Justice Smith Netflix

E provavelmente o mais caro também. Correm os rumores de que esta é a série mais dispendiosa de sempre do Netflix, com um orçamento exorbitante de cerca de 120 milhões de dólares (108 milhões de euros). Luhrmann não responde: ri-se e diz para não acreditarmos em tudo o que se diz.

Num aspecto, a crítica é consensual: eis uma série com a diversidade espelhada, num ano em que tanto se falou de défice de representação em Hollywood e no preciso momento em que os EUA debatem a violência policial sobre os negros. “Há dez anos que trabalho nisto e em dez anos foram sempre os mesmos personagens. Ficarei muito feliz se estiver a contribuir de alguma forma para o diálogo que precisamos de ter”, diz o realizador.

“Acho que esse é um dos mantras do Netflix: ter mais representatividade nos elencos no seu portefólio”, aponta, por seu lado, Catherine Martin. “Sinto-me tão orgulhosa por estar associada a um projecto que tem tantas pessoas diferentes com backgrounds tão diferentes. Para ser honesta, quando estava a fazer a série, estava tão embrenhada na história e na qualidade da representação que não pensei nisso. Mas quando vejo o trabalho maravilhoso feito por estes actores e a forma como contam uma parte da sua história cultural, sinto-me orgulhosa por eles”, diz.

Nelson George não tem dúvidas: “Séries destas levam-nos a mais séries destas." “Fico feliz por fazermos parte deste diálogo, mas o facto é que vamos criar uma nova geração de estrelas. É uma espécie de showcase para uma série de novos talentos que vão continuar e estabelecer os padrões de diversidade da televisão e do cinema nos próximos 20 anos”, argumenta o autor.

De novo Catherine: “Alguém disse na Internet, quando o trailer foi revelado: ‘Finalmente uma série histórica sobre a cultura negra que não tem escravos’. Nunca tinha pensado nisso mas senti-me orgulhosa. Faz sentido, é uma história muito heróica. São rapazes em circunstâncias difíceis a fazer a música dominante de hoje.”

O PÚBLICO viajou a convite do Netflix

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