Mansamente

E assim, ano após ano, vamos empurrando os bombeiros para as chamas. Apontamos o dedo a quem acende o rastilho, enquanto a floresta arde. Exige-se uma moldura penal dura e essa alteração depende de todos nós

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Rui Farinha/nFactos

O casal de Avanca que este fim-de-semana foi elevado à categoria de herói pelos automobilistas que desesperaram horas a fio na fila da A1, devido aos incêndios na zona de Estarreja, demonstrou o quanto as prioridades em Portugal estão distorcidas. Se os elementos da Protecção Civil da região estariam (e bem) preocupados em acudir aos bombeiros que lutaram para combater o incêndio, o mesmo já não se pode dizer da concessionária Brisa que, segundo os relatos de quem esteve no local, não deu sinal de vida, deixando centenas de pessoas na “seca”. Um clássico e ninguém parece importar-se.

A mesma distorção que os sucessivos governos aplicam quando olham para a floresta nacional. Os diagnósticos estão mais do que feitos e hoje mesmo o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares, afirmava: “Mantém-se o problema gravíssimo com o qual o país não tem sabido lidar de forma eficiente ao longo dos anos.” Referia-se ao desordenamento do território, às terras que deixaram de ser cultivadas, à população idosa… Enfim, a tudo aquilo que há muito se sabe, mas que nenhum governante quis resolver até agora com pulso firme.

Desde tempos quase imemoriais que os sucessivos governos têm desgovernado as nossas florestas. Recordemos, por exemplo, as palavras do então ministro Mira Amaral (Indústria e Energia), que elevou o eucalipto à categoria de “petróleo verde” nacional. Se mais ignições fossem necessárias para atear fogos, a mancha florestal portuguesa acolheu então um novo inimigo e as espécies autóctones portuguesas foram desaparecendo, ao mesmo tempo que o eucalipto foi ganhando terreno e temos hoje a maior mancha do “australiano” eucalipto de toda a Europa. O petróleo, por mais “verde” que seja, não deixa de ser petróleo e arde.

Diversos estudos garantem que 85 por cento da floresta nacional é privada, a maior parte da qual composta por parcelas com uma área inferior a meio campo de futebol, ou seja, minúsculas; 12 por cento é de terrenos baldios; três por cento é do Estado; um estudo da Assembleia da República (fonte: RTP) revela que a maioria dos proprietários não habita onde possui os terrenos; os sucessivos Censos mostram que o interior está cada vez mais idoso e desertificado. Além disso, muitas das ignições verificam-se durante a madrugada e mais de 97 por cento dos fogos tem origem humana (crime e negligência). Exige-se, portanto, uma moldura penal dura e essa alteração depende de todos nós, depende da firmeza com que exijamos à nossa classe política, sem excepção, que actue.

O investimento, esse é feito nos meios de combate. Não é errado. Mas é pegar no problema a jusante. Porque também é cíclico que se levantem vozes contra as “negociatas” envolvendo quem vende tais meios de combate aos incêndios.

E assim, ano após ano, vamos empurrando os bombeiros para as chamas. Apontamos o dedo a quem acende o rastilho, enquanto a floresta arde. Indignamo-nos nas conversas de café, nas redes sociais, contra os políticos que nada fazem. Atiramos a nossa ira contra os jornalistas, que ano após ano se “esquecem” de investigar e denunciar quem ganha dinheiro a atear fogos nas nossas florestas — uma meia-verdade, porque ainda há quem investigue e denuncie. E isto mansamente, enquanto continuamos à espera que haja uma próxima vez...

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