A Rússia participa (afinal) nos Jogos Olímpicos?

A falta de entendimento público entre o COI e a AMA só demonstra uma certa falta de união (nada saudável) entre duas instituições-chave no combate à dopagem.

1. A participação nos Jogos Olímpicos (JO) continua a ser um momento alto na carreira de qualquer atleta, desde logo pelo prestígio e pela ideia de exaltação de um conjunto de valores socialmente reconhecidos que envolvem a competição olímpica. Com efeito, é tudo isto – e muito mais se contarmos com os apoios dos patrocinadores – que estava em jogo para os atletas russos que, no contexto da existência de um suposto esquema de dopagem sustentada pelo Estado russo, pretendiam participar nos JO.

2. Já sabemos que, numa decisão polémica, o Comité Olímpico Internacional (COI) estabeleceu um conjunto de critérios de elegibilidade aplicável aos atletas russos, deixando a decisão sobre a participação destes nas “mãos” das federações desportivas. Dos 389 atletas nomeados pelo Comité Olímpico Russo foram admitidos à competição nos JO um total de 271 atletas russos que, segundo uma comunicação do COI de 4 de Agosto (antes do início dos JO), teriam cumprido todos os critérios estabelecidos (o número de atletas continua a crescer em função das decisões das federações internacionais e das decisões do TAS).

3. Os critérios previstos na decisão de 24 de Julho do COI podem ser sintetizados da seguinte forma: (i) os atletas teriam que ter sido submetidos a testes de antidopagem de âmbito internacional (não bastando testes de âmbito nacional) cujo resultado tenha sido negativo e, além disso, não poderiam ter sido mencionados no relatório pedido a Richard McLaren pela Agência Mundial de Antidopagem (AMA); (ii) os atletas não poderiam, igualmente, ter sido punidos com fundamento na violação de uma norma de antidopagem (estando excluídos aqueles que já tivessem inclusivamente cumprido uma pena relacionada com a dopagem).

4. Alguns atletas não concordaram com a aplicação dos critérios por parte das federações desportivas e recorreram à nova câmara ad hoc dos JO do Tribunal Arbitral du Sport (TAS). Não analisaremos aqui – por ora – a natureza jurídica desta nova entidade a quem foi “delegado” o poder decisório por parte do COI, mas somente o mérito da decisão relativamente ao recurso por parte dos atletas Anastasia Karabelshikova e Ivan Podshivalov.

5. A decisão do TAS de 4 de Agosto – se excluirmos as considerações que este tece numa lógica de desculpabilização do COI, manifestamente desnecessárias num discurso jurídico e, em particular, no que toca à independência do TAS em relação às partes – teve a virtualidade de reconhecer que o critério da exclusão de qualquer atleta que tenha violado uma norma de antidopagem não é compatível com um “direito natural de justiça”, sendo este critério, portanto, ineficaz. Neste sentido, o TAS entendeu que os atletas russos Anastasia Karabelshikova e Ivan Podshivalov podiam pedir à federação internacional de remo (FISA) uma reavaliação da aplicação dos critérios, desconsiderando o polémico critério do COI. Com efeito, a inexistência de sanções perpétuas, mesmo no plano disciplinar, parece-nos ser um postulado essencial de qualquer Estado de Direito e, deste modo, a decisão do TAS está certa.

6. Curiosamente, um dos aspectos mais relevantes da argumentação dos atletas envolvia a retroactividade de todas as condições de elegibilidade, mas esta circunstância nem sequer foi considerada pelo TAS. Aquele era, porém, um aspecto determinante na ponderação jurídica destas normas.

7. Em todo o caso, é relevante mencionar que as consequências dos critérios enunciados pela decisão do COI – em particular após esta decisão do TAS – são bem menores do que o alcance que se esperaria. A verdade é que a maioria dos atletas russos participa nos JO. E o que aconteceu a Yuliya Stepanova, a atleta que denunciou o esquema de dopagem de Estado? Fica a ver os JO pela televisão pelos mesmos motivos que o TAS considerou serem violadores do tal “direito natural de justiça”. Esta situação paradoxal deve-nos deixar a todos apreensivos.

8. Por último, deixemos ainda três notas. Em primeiro lugar, são de lamentar as trocas de acusações entre o COI e a Agência Mundial de Antidopagem (AMA). As fraquezas e os erros das instituições transnacionais são para ser discutidos, como é evidente, também pela opinião pública, mas não numa lógica de acusações institucionais mútuas. Com efeito, entendemos ser pouco relevante descobrir, neste caso, quem falhou num quadro de uma luta entre instituições. Importa, pelo contrário, perceber o que correu menos bem e corrigir os problemas que forem encontrados. A falta de entendimento público entre o COI e a AMA só demonstra uma certa falta de união (nada saudável) entre duas instituições-chave no combate à dopagem. Em segundo lugar, a polémica com a dopagem dos atletas russos está longe de estar encerrada, desde logo, depois de o Comité Paralímpico Internacional ter suspendido colectivamente os atletas paralímpicos russos. Pode, ainda, seguir-se um conflito jurídico e a resolução deste junto do TAS. Em terceiro lugar, uma palavra de apoio e de admiração – sem querermos menosprezar os outros desportos – para prestação do seleccionador Rui Jorge e da equipa de futebol olímpica que, com a “selecção possível” em virtude de uma certa desconsideração dos clubes em relação aos JO, consegue um primeiro resultado francamente positivo. É precisamente este o espírito olímpico: Citius, Altius, Fortius.

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