A pele de Dev Hynes

Freetown Sound simboliza as relações de pele na nossa música.

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Há muita dor e muita mágoa em Freetown Sound. Mas também muita esperança e vontade de unir

Se a música pop nasceu para quem a pratica poder ser outra coisa, então alguém se esqueceu de entregar o memorando com as regras a Dev Hynes: alto, esguio e ágil, Hynes faz canções que parecem espelhá-lo musicalmente: assentes em beats esguios, minimais, com recurso a dois ou três acordes ao piano, um par de notas à guitarra e um falsete.

Mas Hynes não é exactamente pop, embora uma parte do seu imaginário seja herdado da pop dos anos 80. As suas teclas, os seus baixos – enfim, a sua soul eléctrica – estão impregnados de música negra. Hynes é negro e isso nota-se de forma explícita até nos samples colocados a meio de Desirée ou no fim de With him e Love him, três temas de Freetown Sound, o terceiro e recente disco. Em Love him ouve-se um homem negro perguntar-se que tipo de roupa deve usar para não assustar os brancos; em Desirée a canção é interrompiada a meio pelo sample de uma mulher que explica que uma negra num subúrbio tem de ir para a cama com o marido para ter uma máquina de lavar. E não se esperava isto.

Porque até agora Blood Orange fora uma espécie de Sade no masculino, um Prince sem histrionismo. A sua piéce de resistance, Time will tell, de Cupid Deluxe (o segundo álbum, de 2013), era uma simples balada com uma linha de piano e uma caixa de ritmos; o tema era o amor e um mote repetia-se: “Come into my bedroom”, pedia Hynes; havia pele mas não pele. Nesse álbum já lá estavam as marcas da escrita de Hynes: a herança dos anos 80, a escrita soul minimal, a balada pouco convencional. Mas se as componentes do seu universo são conhecidas, Hynes – cuja voz normalmente oscila entre o sedoso e o melancólico – é bastas vezes imprevisível, como em Uncle ACE, de Cupid Deluxe, que parece uma colaboração improvável entre a esquipa de escrita da Motown e Robert Wyatt.

Freetown Sound começa por ser uma homenagem à cor da pele logo no nome – o pai de Hynes vem de Freetown, na Serra Leoa – e espalha-se pelos 17 temas do disco. Temas como With you são brincadeiras instrumentais que servem mais para criar ambiente do funcionar enquanto canções. O rácio de canções amorosas cai, as alusões rácicas aumentam: logo em By ourselves, o primeiro tema, por entre metais melancólicos, um sample de um discurso de uma negra verbera com ferocidade contra o machismo. É raro depararmo-nos com algo assim, que nos obriga a, de facto, ouvir.

Ao segundo tema, Augustine, estamos em pleno território conhecido de Dev Hynes: caixa de ritmos, duas notas de guitarra, piano minimal, falsete mais à frente e o habitual refrão de uma beleza irreprimível. Em Chance regressa a obsessão de Hynes por saxofones e coros, em Best to you temos o beat exótico a soar aos anos 80. Não que Freetown soe a repetido – a paleta sonora aumentou e encontramos momentos excepcionais de funk lânguido (E.V.P.) ou um estranhíssimo e viciante exercício de jazz-funk dançácel (Desirée). E mesmo quando se mantém por aquilo que faz melhor – unir uma melodia a uma percussão – Hynes mostra um talento admirável (como se pode notar em Juicy 1-4). Algumas semanas de escuta fazem-me pensar que não se perdia nada em deixar um par de temas de fora – nada de extraordinário, diga-se: quando hoje ouço Kid A, dos Radiohead, penso o mesmo. Não há nenhum disco que, se formos frios, não pudesse ser melhorado.

Algumas semanas de escuta fazem-me também pensar que Freetown Sound vai ficar na história – não como o tipo de disco que augura ser um monumento, mas aquele que na sua confusão e falta de interna e falta de respostas simboliza um momento de estilhaço na música (em particular o r’n’b) e nas relações de pele.

Há muita dor e muita mágoa em Freetown Sound. Mas também muita esperança e vontade de unir. E isso é mais honesto e comovente do que um bando de certezas de fácil digestão.

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