E as curtas, senhores?

As quatro curtas nacionais a concurso em Locarno são, por onde se quiser ver, um bom espelho daquilo que é a produção portuguesa do formato.

Fotogaleria
Estilhaços, de José Miguel Ribeiro, vai ao cerne de uma história de violência passada de pai para filho, da Guerra Colonial aos nossos dias DR
Fotogaleria
Um Campo de Aviação, de Joana Pimenta, tem estreia mundial em Locarno DR

O cinema que se faz em Portugal tem neste momento uma visibilidade internacional fortemente desproporcionada em relação ao volume da produção e ao seu peso comercial global? Tem, sim senhor. E tem-no não apenas devido à presença regular nos festivais de primeira categoria de realizadores portugueses. Tem-no, também, graças a uma presença regular nas competições de curtas-metragens, que viram João Salaviza ou Leonor Teles receberem em anos recentes os prémios máximos de Cannes ou Berlim, e à atenção que esse formato, ainda encarado inevitavelmente como “menor”, merece junto de programadores, críticos e produtores.

É por isso inevitável olharmos para a presença de quatro filmes portugueses no concurso oficial de curtas de Locarno, Pardi di Domani, à luz deste interesse global, sobretudo quando integrados numa “embaixada” inaudita em termos de quantidade. Mas, veja-se por onde se quiser ver, são filmes que reflectem de modo bastante acertado o cinema que se produz hoje entre nós: tanto mais estimulantes quanto mais próximos do objecto singular e inclassificável, tanto menos interessantes quanto mais próximos da formatação narrativa à medida de um objectivo.

Expliquemo-nos: as duas ficções, À Noite Fazem-se Amigos, de Rita Barbosa (passa esta quinta-feira, dia 4, com repetições a 5 e 6) e Setembro, de Leonor Noivo (dias 6, 7 e 8), que tiveram estreia no Curtas Vila do Conde, são tecnicamente correctíssimas mas mostram-se encerradas na gaveta armadilhada do “filme de festival”. As suas narrativas difusas e existencialistas não conseguem sustentar durações mais próximas da média-metragem (25 minutos para o filme de Rita Barbosa, 40 para o de Leonor Noivo). Não chega À Noite Fazem-se Amigos estar extraordinariamente bem filmado (fotografia de Paulo Menezes, som de Miguel Martins), nem a Setembro comprovar que Leonor Noivo tem um olhar atento sobre as personagens que filma; ambos os filmes parecem incapazes de saber o que querem ou explicar ao que vêm. Na sinopse do filme de Rita Barbosa lê-se: “Ficamos sem saber como tudo termina, ficamos mesmo sem saber se aquilo alguma vez havia começado.” É isto, sem tirar nem pôr, agravado por serem objectos que correspondem na perfeição à ideia redutora que a maior parte das pessoas faz do que é o “cinema português” ou, mais latamente, o “cinema de autor”.

Para provar exactamente o oposto, aí temos Joana Pimenta e José Miguel Ribeiro, cujos filmes têm personalidades muito próprias e cujas vozes autorais não correspondem forçosamente a expectativas. Joana Pimenta é professora em Harvard e afiliada do Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard (o instituto que tem forçado as fronteiras da não-ficção com títulos como Leviathan, de Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor). O seu Um Campo de Aviação, a única curta portuguesa a ter estreia mundial em Locarno (dias 7, 8 e 9), é um filme abertamente experimental inspirado em parte por textos de Clarice Lispector, cruzando imagens vulcânicas da Ilha do Fogo, citações visuais de Brasília e maquetas arquitectónicas num todo que só fará sentido nos momentos finais, com uma “pirueta” de narração que literalmente “reconfigura” o filme e ganha o que até aí corria o risco de se perder no gratuito.

José Miguel Ribeiro é talvez o nome mais prestigiado da animação portuguesa, com títulos premiados em todo o mundo como A Suspeita (1999), Passeio de Domingo (2009) e Viagem a Cabo Verde (2010). Com Estilhaços, estreado na Monstra e exibido em Locarno dias 10, 11 e 12, Ribeiro utiliza as possibilidades da animação para ir ao cerne de uma história de violência passada de pai para filho, da Guerra Colonial aos nossos dias. É pena que a narrativa seja um pouco demonstrativa e pontualmente patuda, porque a excelência da animação (cruzando diferentes métodos e incrustando imagem real) dispensa quaisquer redundâncias: Estilhaços é um pequeno prodígio técnico que comprova o eclectismo formal e criativo de José Miguel Ribeiro, e, a par de Um Campo de Aviação, confirma como são a diferença e a personalidade que fazem a mais-valia da produção que vamos tendo. Assim os júris de Locarno a saibam ver.

Sugerir correcção
Comentar