A história de uma banda que não teve medo de encarar as canções

Passadas duas décadas sobre a edição de LusoQualquerCoisa, lançam uma compilação que alinha a cronologia dos seus singles. O Melhor dos Clã conta a história de uma banda que não teve medo de encarar as canções.

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A vida dos Clã mudou com um pronome pessoal. Após a edição, em 1996, do álbum de estreia, LusoQualquerCoisa, marcado pela filiação numa sonoridade acid-jazz e funk que, por cá, sempre teve naturalidade portuense, o “desaire” do lançamento levou a que o disco ficasse praticamente fechado na sala de ensaios. Em vez da imparável sucessão de palcos que os seis músicos tinham antecipado, e apesar de Pois é ter sido bem acolhido pelas rádios, os Clã ficaram com demasiado tempo livre em mãos, sentados à espera que o telefone tocasse e os chamasse para concertos. O telefone tocou poucas vezes, os espectáculos não abundaram, o disco ficou-se por vendas muito modestas e em vez de as canções crescerem em público pareciam fadadas a acumular pó, abandonadas a um canto, e mirrar até à irrelevância.

Apesar de algum desalento, reconhece passados 20 anos Manuela Azevedo, esse tempo na sala de ensaios não foi dedicado à lamúria e a amaldiçoar o mundo que teimava em não se colocar de joelhos perante a banda. Em vez de olharem para fora à procura de justificações ou razões para o insucesso de LusoQualquerCoisa, viraram-se para dentro. “Ficámos enfiados na sala a descobrir outras coisas, a virar as canções do LusoQualquerCoisa do avesso e, nesse processo, a descobrir mais sobre a personalidade sonora não só da banda mas também de cada elemento”, recorda a vocalista ao Ípsilon.

Ao virarem as canções do avesso, os Clã procediam a uma higiénica limpeza de tudo aquilo que ia parecendo mais supérfluo e afinavam a personalidade musical do grupo. Para trás ficavam o acid jazz que impulsionava temas como Pois é – em que o scat de Manuela a fazia soar a uma Betty Boop movida a funk – ou Mr. Inútil, o rap de Hélder Gonçalves e Miguel Ferreira, o trip-hop de Para sempre ou a sombra óbvia de Prince em Azar. As pistas seguidas identificavam em temas como Não vás, de uma linhagem rock com swing parente dos No Doubt de Tragic Kindgom, ou na balada de fôlego Novas babilónias matrizes a adoptar como a coluna dorsal das novas criações.

Silenciada essa marca funk, hip-hop e soul, os Clã avançavam rapidamente para a composição de Kazoo. “Mais importante do que essa dimensão estética”, relativiza Manuela Azevedo, “foi fulcral percebermos o que queríamos dizer, o que podíamos fazer e como recorrer a todos os sons que estivessem à nossa mão.” Composto e gravado com a urgência de corrigir a imagem pública do grupo, Kazoo (1997) foi “feito um bocado a correr”. “Há alguma frustração por não termos investido mais tempo a burilar os arranjos do álbum, mas queríamos mesmo ter o disco cá fora para poder tocá-lo ao vivo. Tínhamos muita confiança naquelas canções e estávamos sedentos de as levar para palco – devido a essa descoberta, ainda muito fresca e vibrante, daquilo que nos interessava realmente fazer.”

Kazoo tornar-se-ia o álbum de explosão de popularidade dos Clã, graças a canções que se tornaram clássicos na discografia do grupo. Entre elas, naturalmente, GTI (Gentle, tall and intelligent) e Problema de expressão, ambas com letra de Carlos Tê. GTI fixaria uma tendência para pequenos retratos de crónica social com que Tê continuou a abastecer-lhes a discografia. Problema de expressão, por outro lado, ofereceria aos Clã a sensação inédita de verem uma canção sua passar a fazer parte das vidas das pessoas, como se lhes fosse retirada a autoria para passar a existir de uma forma colectiva. Como se passassem a ser apenas os intérpretes de uma canção que sobre a qual não poderiam reclamar qualquer direito de posse ou de criação.

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Kazoo, a viragem: Depois da frustrante estreia com LusoQualquerCoisa, temas como GTI e Problema de expressão foram reclamadas pelo público como seus

E Problema de expressão esteve, afinal, quase para não integrar o alinhamento de Kazoo, presa por um detalhe que impedia a música de se soltar. “Inicialmente dizia apenas ‘Só para dizer que amo’, era mais segura, abstracta, geral, não pessoalizava, mas soava mal, ficava uma coisa pendurada foneticamente e sentíamos que havia qualquer coisa que não funcionava, a canção não acontecia.” Até que Carlos Tê acrescentou um pequeno “te”, o tal pronome pessoal que mudou por completo todo o tom, passando a escutar-se “só para dizer que te amo”. “Foi preciso encarar e assumir porque isso tornava a canção muito mais pessoal, talvez pudesse ser considerada lamechas, e ficámos um bocadinho intimidados. Mas passava a fazer sentido e tornava-se tocante. Termos assumido esse risco foi importante para a canção ter funcionado.”

Esse desbloqueio que os aproximaria do público teria também como consequência a transformação dos Clã numa banda sem medo das canções. Tanto das palavras que pudessem ser lidas como mais sentimentais ou duras, quanto de uma postura abertamente pop que sempre foi desconfortável na música portuguesa. A popularidade sempre foi assunto de pudor, vista como perda de validade artística, como se agradar a massas fosse um pecado punível com sobranceria e desprezo. Os Clã assumiram em Kazoo essa vontade de invadir vidas alheias, sem se deixarem comer pela multidão.

Esticar a corda

A assunção despudorada da canção apenas saiu engrandecida com a aproximação a autores brasileiros iniciada em Lustro (2000), álbum construído sobre a agilidade de composição de Hélder Gonçalves e o entendimento colectivo proporcionado por Kazoo e pela extensa digressão que se seguiu. Em Lustro, os Clã chamam a bordo o homem dos Titãs e dos Tribalistas Arnaldo Antunes, que haviam conhecido numa primeira investida em terras brasileiras, em 1999. Na ocasião, pedindo a Arnaldo que lhes elaborasse uma lista de discos de música moderna brasileira que pudessem comprar e trazer consigo, acabaram por descobrir outras afinidades futuras, como no caso de John Ulhoa e Fernanda Takai, dos Pato Fu, com quem também viriam a colaborar. Essa ponte transatlântica levou os Clã a acolherem “uma outra forma de trabalhar a língua, de pensar nas coisas e até de olhar para o mundo” que teve como momento inaugural H2omem.

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Lustro, a afirmação: Pegando nas pistas de Kazoo, foi o corolário de uma primeira fase do grupo, num momento em que a sua reputação ao vivo ajudava a uma popularidade crescente

“Mas é uma luta”, ressalva Manuela Azevedo em relação a essa falta de vergonha benigna. “É um caminho que se faz para conquistar essa liberdade. Não foi sempre assim. Lembro-me que houve casos de letras que ficaram pelo caminho porque não nos sentíamos ainda com cabedal para elas, e isso tem muito que ver com a liberdade que nos concedemos. Tem de se ter algum cabedal para cantar certas coisas e dizer certas coisas naquilo que se canta, para esticar a corda nessa dimensão da expressão.”

Com os compadres brasileiros quiseram olhar ao microscópio uma outra oficina de canções lusófona, tal como fizeram com Sérgio Godinho, no projecto Afinidades, “exercício quase levado ao extremo de releitura de canções e uma grande lição de como escrever e fazer canções em português”. Daí que agora que LusoQualquerCoisa faz 20 anos e a Warner propôs ao grupo comemorar a efeméride com uma compilação, os Clã tenham feito questão de integrar Espectáculo, do álbum com Sérgio Godinho, por entenderem-no como uma peça fundamental da sua discografia. De resto, e por estarem ocupados a trabalhar num novo álbum e num musical para crianças a estrear em Janeiro no Teatro Nacional de São João, a convite de Nuno Carinhas e com libreto de Regina Guimarães, os Clã optaram pela fórmula mais simples de se manifestarem em causa própria: fizeram do alinhamento uma cronologia dos seus singles, abrindo excepções apenas para os temas com que participaram nos álbuns de tributo a Xutos & Pontapés e Rui Veloso.

E partindo desses factos (que excluem necessariamente temas obrigatórios em palco como Farenheit e Lado Esquerdo, cujo estatuto se deve à vontade popular e não ao crivo da indústria), é fácil olhar para Lustro, o álbum mais representado, como o corolário de uma fase do grupo. “É como se, com o Lustro, tivéssemos chegado a uma maioridade naquele nível”, concorda Manuela Azevedo. “Podíamos ter ficado por ali. Atingíamos aquele patamar e continuávamos a depurá-lo e a mantê-lo, a ter mais filhos naquele universo”, ri-se. Com Afinidades pelo meio, mas talvez sobretudo com a experiência da banda sonora ao vivo para Nosferatu (de F .W. Murnau), em que até a voz engrossava uma partitura instrumental, Rosa Carne (2004) significou aquilo que a vocalista chama “a partida para um admirável mundo novo”. “Houve coisas que então descobrimos harmonicamente, em termos de estrutura e sónicos que depois decidimos continuar a desbravar”, recorda.

Disco dedicado ao universo feminino, Rosa Carne mantém-se até hoje como o disco mais ousado dos Clã. Desde logo pela audácia de se apresentar com Competência para amar, belíssima canção com arestas, a voz samplada de Amália a rasgar a música, mas extensível aos arranjos de todo o álbum – de Pas de deux (balada gótica) e Gordo segredo (tema que poderia ser de Maria João e Mário Laginha) a Eu ninguém (uma obra-prima de delicadeza que ficou demasiado esquecida na vida do grupo). Sabendo que Rosa Carne não era um disco fácil, os Clã não estranharam alguma dificuldade popular em encaixar o álbum, até porque, frisa a vocalista, as coisas só foram fáceis e imediatas com Disco Voador, apontado para o público mais novo. “Quando saiu o Lustro, que toda a gente acha que é unânime, teve críticas em que acharam que o disco não tinha jeito nenhum, que estávamos perdidos, armados em rock stars e a fazer coisas que não tinham nada que ver com o nosso universo.”

De olhos no futuro

Depois da toada “quase operática” de Rosa Carne, começou a nascer no grupo a vontade de contrapor a esse disco um registo mais robusto. Dessa reacção nasceu Cintura (2007), altura em que Manuela Azevedo diz ter-se dado uma pequena crise. “De vez em quando há uma ou outra discussão, uma ou outra cabeçada. No caso, foi uma gravação mais complicada”, admite, “porque queríamos fazer um disco mais físico, o que exigia um rigor de execução maior. Tivemos algumas dificuldades nisso, trouxe alguns desconfortos que tiveram que ver com a frustração de se querer fazer uma coisa e não se conseguir atingir. Foi um processo mais conturbado.” Apesar disso, nenhuma das crises até agora fez qualquer vítima. Desde o início os Clã são os mesmos seis – Manuela, Hélder, Miguel, Pedro Rito, Pedro Biscaia e Fernando Gonçalves –, talvez porque aprenderam com os anos a não deixar para trás nenhuma frustração devidamente resolvida. “Resolvemos as feridas na hora, desinfectamos e tratamos logo, algo muito importante para depois não ficarem mágoas ou coisas azedas que depois vão minar e gangrenar a relação.”

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Corrente, a estabilidade: Se Rosa Carne significou uma maior assunção de risco e Cintura foi assumido como uma reacção mais física a esse risco, Corrente consolidou um grupo mais plural

Cintura implicou, portanto, um confronto com os limites do próprio grupo, algo que não voltou a acontecer em Corrente (2014). Em vez de alguma saturação trazida por 20 anos a trabalhar com os mesmos elementos, os anos têm ajudado a equilibrar um pouco as responsabilidades. Hélder Gonçalves “tinha sobre os ombros a tarefa de decidir a produção, os arranjos e olhar para a sua própria composição de fora”, enquanto agora todos opinam com mais segurança sobre os caminhos a tomar.

Numa altura em que chega O Melhor dos Clã, um olhar para trás que os Clã dizem não ser da sua natureza, e em que Manuela fala das discussões internas como essenciais para estarem todos “antenados na mesma frequência”, o grupo prepara um novo álbum que dará corpo a um conjunto de canções. Agora, “se é álbum numa bolacha [CD], meramente digital ou que só existe ao vivo”, isso ainda está por decidir. E nessas decisões não há passado que lhes possa valer.

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