Os vários Shakespeares que são um só nas ruínas do Carmo

Cimbelino, com encenação de António Pires, é uma tragicomédia que joga com as memórias de todas as obras de Shakespeare e estreia esta quarta-feira a propósito do festival Glorioso Verão.

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Mário Sabino Sousa
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É sob o céu aberto da imponente pedra do Museu Arqueológico do Carmo, com o som distante das gaivotas ao início da noite, que as aias da corte do rei Cimbelino da Britânia comentam as intrigas da família real. A princesa Imogénia casou com o humilde Póstumo Leonato contra a vontade do pai, que queria uni-la ao seu enteado, Cloten. Leonato é banido para Roma e encontra Joaquim, um italiano atrevido que aposta com ele a infidelidade da princesa. Está lançado o repto para Cimbelino, de Shakespeare, na encenação de António Pires que sobe a palco entre esta quarta-feira e o próximo dia 13 de Agosto nas ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa, em mais um capítulo do festival Glorioso Verão.

Esta peça do último período dramatúrgico de William Shakespeare contém todo o espectro de emoções humanas que catapultou o escritor para a intemporalidade – do amor ao ódio e do ciúme à inveja. Não havia por isso para António Pires melhor texto para celebrar os 400 anos da morte de Shakespeare: “Pode-se dizer que é um pot-pourri de todas as peças dele, a forma como mexe com o espaço e o tempo é muito livre. Há uma grande rapidez, diria que é uma escrita muito cinematográfica."

Assim é quando, a dado momento, Joaquim e Póstumo têm uma discussão acesa em Roma sobre a castidade e a fidelidade de Imogénia e, no momento seguinte, o italiano já está na Britânia a executar o plano de seduzir a princesa. A braços com uma estratégia falhada, Joaquim forja a prova da infidelidade roubando uma pulseira de Imogénia. Rapidamente volta a Roma, onde deixa Póstumo desolado com a suposta traição da sua amada, levando-o a ordenar ao pajem Pisânio que a mate. O criado, por seu lado, ajuda Imogénia a disfarçar-se e a escapar para ir em busca do fidalgo.

Além da tragédia do amor de Imogénia e Póstumo (que faz lembrar a de Romeu e Julieta), também há Belário, um montanhês que foi banido injustamente da corte e raptou os dois filhos do rei, a curandeira que, conhecendo o vil carácter da rainha, lhe dá o que ela crê ser uma poção fatal, e Cloten, o mesquinho filho da rainha sempre acompanhado de duas aias sinistramente semelhantes às Meninas de Diego Velázquez.

Um jogo de memória cultural intencional que partiu das recordações do próprio António Pires. “Quando li o texto, lembrava-me sempre de alguma coisa, tão depressa estava num conto de fadas como numa tragédia grega, por isso decidi provocar o público”, conta. No decorrer do espectáculo, encontram-se referências à Medusa de Caravaggio e aos Amantes de René Magritte e uma música que já teremos ouvido antes em algum lado.

Cimbelino conta com actores como Adriano Luz, Rita Loureiro e Ricardo Aibéo e exigiu um trabalho de preparação muito além dos dois meses de ensaios, sobretudo a nível da linguagem, que foi “tornada mais concreta e perceptível” por Luísa Costa Gomes. O texto não obedece estritamente ao verso do original para facilitar a correspondência entre a acção e o tempo da projecção das falas em inglês na parede sul do convento.

Na peça participam também alunos da ACT – Escola de Actores, numa colaboração que António Pires vem desenvolvendo nos últimos anos, “de forma a poderem participar num espectáculo profissional em vez de um exercício que fica circunscrito e não é mostrado ao grande público”. O tamanho do elenco, que totaliza 26 actores com os alunos incluídos, é uma vantagem porque “em Shakespeare é muito bom ter pessoas para todos os papéis”.

A predominância de papéis masculinos em Shakespeare constituiu inicialmente uma dificuldade, mas acabou por dar origem ao coro das aias. “Foi uma surpresa surgida do facto de haver tantas mulheres e resultou bem porque o movimento parte delas, é como se conduzissem o espectador”, diz o encenador.

Apesar de se ter estreado num palco à italiana no Festival de Almada, e de ter estado em cena no Palácio do Barrocal, em Évora, Cimbelino foi pensado, desde logo, para as ruínas do Carmo, onde o encenador já tinha apresentado Romancero Gitano, de Federico García Lorca. “Esta pedra e a distância do espaço fizeram-me logo pensar numa ideia de profundidade”, esclarece.

O próximo projecto de António Pires no Teatro do Bairro partirá de um texto de Mário Cesariny, terá a participação de Maria João Luís e estreará em Outubro. Para já, o encenador deixa-nos com a crueldade de Macbeth, a sede de vingança de Hamlet, o ciúme de Otelo e a tragédia de Romeu e Julieta, diferentes mas iguais no todo universal que é Cimbelino.

Texto editado por Inês Nadais

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