Uma exígua conceção de cidadania

Como o Estado não pode legislar sobre a língua sem o fazer sobre as ideias, é essencial que se saiba que o AO90 está a dizimar, com a língua, as ideias que ela pode veicular.

Querendo eu muito opinar – e tendo muitas e fundadas opiniões sobre inúmeras facetas do meu múnus profissional (ou assim me parecendo) –, aceitei, em tempos, o convite do director de uma publicação cultural para o fazer regularmente nas suas páginas.

Único óbice: não era, não sou, jamais serei adepto do AO90 nem, de resto, de qualquer espécie de engenharia da língua que se lhe assemelhe, a qual, para todos os efeitos, creio equiparável a uma espécie de lobotomia em mais suave, porém muito mais radical.

E comuniquei-o ao meu interlocutor, dizendo que entendia não mexer uma palha para ajustar o que escrevesse à norma celerada. O director respondeu-me qualquer coisa como: pois é, mas neste jornal só escrevem como entenderem [i.e., sem AO] os criadores e as personalidades. Simpática resposta, de facto. Infelizmente, entre o aturdido e o já só moderadamente lisonjeado, não soube dar a réplica que, acautelando a minha honra, me impediria, porventura para sempre, de partilhar ideias sobre a escola, a educação e a sociedade com os poucos concidadãos que lêem jornais. Uma resposta que podia soar assim: ora saiba, senhor director, que está a falar com um criador e uma personalidade!

Não. Humildade tingida de humilhação (melhor diria vice-versa!), recuei para as tábuas da resignada desobediência privada, e ficámo-nos por um entendimento que nunca me satisfez: eu escrevia no português que aprendera, ele mandava transcrever para acordês. Desobediência secreta, clandestina. Pública, silenciosa, aparente conformidade ao ditame da desonra.

Já no meu local de trabalho, naquela trincheira em que a desonra se converte em abdicação cívica e a desobediência se torna o único recurso da lei contra o abuso, consegui ser um pouco mais consequente, oferecendo-me, qual cordeiro sacrificial dos Antigos, à crítica dos Modernos (meus pupilos) no altar do quadro negro. E nos enunciados de testes, grafando, em rodapé, “texto submetido ao conversor Lince (ILTEC)”, passei a dissociar a língua pátria do seu resíduo cadaveroso.

Crato mandara definitivamente acordar (“É um facto!” creio que dizia), seguro do aplauso dos socráticos e outros pragmáticos do meu partido, e a turba acordava. Eu passara a entrar diariamente na receção da escolinha – Portugal dos Pequenitos da ortografia –, a participar em reuniões do conselho geral na sala de atos e a enfrentar o desconcerto programado no já aqui descrito (António Pascoal, É a hora?, 12.5.16), e muito inquietante, ambiente em que se mistura o mais abjecto silêncio com o entusiasmo inculto pela simplificação supostamente benfazeja para as meninges dos garotos, os negócios e a lusofonia. Mas na sala de aulas tinha de fazer qualquer coisa. Porquê?

A razão, bem simples, é esta: a liberdade de ensinar e aprender não é uma coisa só ou principalmente dos grupos, das comunidades, das confissões, das ideologias pedagógicas, da conformidade a uma ideia colectiva sobre o que aprender. Ao contrário, é – radical, racional e indispensavelmente – o princípio que impede o Estado, de que sou funcionário civil – e porque, enquanto seu funcionário, não agindo na esfera privada! – de entrar na minha cabeça para ajuizar por mim sobre o que é mais correcto, quando tenho de decidir o que ensinar e como ensinar, dentro de limites razoáveis, determinados por um programa escolar que me obriga, apenas e só, em referência ao conhecimento disponível no âmbito da minha especialidade e das que concorram para as docências de que sou responsável (isto só vale, é claro, para as democracias!). E como o Estado não pode legislar sobre a língua sem o fazer sobre as ideias, é, em definitivo, essencial que se saiba que o AO90 está a dizimar, com a língua, as ideias que ela pode veicular. E que é por essa razão, como sua inevitável e obrigatória consequência, que nem um só dos meus alunos, já veteranos em acordês, deixa de hesitar e de pronunciar como ‘concessão’ aqueloutro vocábulo, s.f., da família de conceito, s.m., de uso comum na disciplina que ensino.

Pergunto: até quando concederemos a Malaca o poder de confiscar o que é de todos, edificado no tempo, na história, na norma culta sedimentada sobre o grego e o latim, nas ciências, nas artes e nas letras europeias?

E não se confunda mais, por favor, a interessada rendição de alguns com a realização do bem comum. Numa altura em que só resistem ao reconhecimento do desastre os negócios do papel escolar, as vaidades caprichosas e os potentados académicos que, como um pretérito primeiro-ministro, nunca erram, importa não esquecer que a persistente invocação do valor político-económico da língua é já só uma ficção conveniente para cavalgar e controlar a próxima etapa: o penso rápido com que alguns vão querer, contra o português europeu, universal, remediar o que não tem remédio.

Professor

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