As horas de trabalho e a vida humana

Quando o mundo evolui tão rapidamente para a robotização, era lógico sonhar-se que homens e mulheres poderiam trabalhar menos horas, dispor de tempo de lazer e de convívio com a família. Não foi assim.

A petição já apresentada pela Ordem dos Médicos (OM) para a redução do horário de trabalho, para acompanhamento dos filhos, deve integra-se na discussão do tempo de trabalho em geral. O parecer do Colégio de Psiquiatria da Infância e Adolescência da OM destina-se à 1.ª infância (dos 0 aos 3 anos de idade), mas faz também considerações sobre o papel do Estado no direito à protecção das crianças em todas as idades. Como parecer científico, que é, baseia-se em autores consagrados como John Bowlby, Winnicott, e René Spitz, os primeiros britânicos, o terceiro austríaco, que se dedicaram a descrever a necessidade da presença da mãe nos primeiros anos de vida. Não se referiam apenas a uma entidade maternal presente, mas a uma mãe capaz e disponível para ser carinhosa. E quanto a autores portugueses são citados os também consagrados João Seabra Diniz, que desenvolveu um trabalho importante quanto ao papel da mãe adoptiva em relação às crianças da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em processo de adopção, João dos Santos pai da pedopsiquiatria em Portugal e Maria José Gonçalves, fundadora da Unidade de Psiquiatria da Primeira Infância no Hospital Dona Estefânia, considerada a principal referência nacional na área da saúde mental nessa idade. Não posso deixar de referir que foi graças a Maria José Gonçalves, que me visitou e ao meu filho na Prisão de Custoias no Porto, que eu o pude guardar comigo durante quatro anos. Com bons resultados.

Para todos eles “é unânime, na comunidade científica, a ideia de que os primeiros tempos de vida são determinantes na estruturação da personalidade”. Citando João dos Santos “a personalidade do homem tem o seu ponto de partida no jogo das relações que se estabelecem entre a mãe e o filho, durante os primeiros meses ou anos”. Curiosamente passou-se depois da comprovação empírica psicanalítica para a comprovação nas neurociências e sobretudo nos estudos de imagem funcional do sistema nervoso central, que mostraram que o nosso cérebro se modela também a partir da experiência relacional.

O português António Damásio deu para isso um contributo de grande importância a nível internacional. Os actuais estudos também internacionais sobre a aprendizagem da leitura realizados, pelo grupo do português José Carlos Junça de Morais, permitem-nos avançar neste conhecimento. Sabe-se hoje também que este relacionamento da criança deve ser estendido à outra figura do par parental e às relações intra-familiares, que devem ser estáveis. Não está em causa reservar o papel da mulher ao “lar”.

Mas outras são as histórias que eu e os outros médicos ouvimos no gabinete de consulta. Actualmente, trabalho nos Serviços Médicos do Sindicato dos Bancários e no consultório privado. Desde que me reformei do Hospital de Santa Maria deixei de dar consultas também a pobres. Vejo pois doentes da classe média, nas suas várias divisões que acabaram por se estabelecer – baixa, média e alta. No entanto, as histórias de vida que oiço são transversais a estes vários níveis. Pergunto e oiço o que se passa no dia-a-dia das pessoas, porque isso faz parte do papel do médico (a “medicina narrativa”).

E o que oiço, sobretudo em casais ou em mães e pais isolados, que vão desde os vinte aos cinquenta e tal anos é o seguinte. De manhã levantam-se cedo, aí pelas seis horas, porque têm que acordar e tratar das crianças e o caminho até ao emprego vai ser longo em tempo, seja em carro, seja nos transportes públicos. Empacotadas e sonolentas, levam as crianças para as deixar nas creches ou nas escolas. Como alternativa deixam-nas no entreposto dos avós para estes por sua vez os levarem à escola. Chegam ao trabalho e finalmente conseguem beber um café em paz. A que horas saem ao fim da tarde? Onde já lá vão as oito horas de trabalho! “É conforme”, respondem-me invariavelmente. Ou o chefe, ou o director, ou o patrão (tanto no público como no privado), com quem entretanto se estabeleceram relações de crispação, deixaram em cima da secretária trabalhos a concluir até ao dia seguinte, ou simplesmente os empregados estão a olhar uns para os outros para ver quem é o primeiro que sai, ou passam aquela hora a mais depois do estabelecimento das 40 horas, em posição de raiva e de partida, porque aquele era um tempo precioso para o que se segue.

E o que se segue é nova corrida, nos transportes. Vão buscar as crianças à escola ou aos avós, chegam a casa quase à hora do jantar, enfiam com as crianças no banho, vestem-lhes o pijama, se forem os mais crescidinhos ainda têm os inclementes trabalhos-para-casa, que são feitos com a “ajuda” do pai ou da mãe. Dão-lhes de comer, metem-nos na cama. É preciso é que durmam, não há tempo para histórias. Arranjam o jantar. E uf! Finalmente juntos o pai e a mãe. Juntos?... E quanto às horas de sono, vão ser curtas em relação às necessidades, que estão cientificamente estabelecidas, com consequências nefastas para todo o organismo. Ao fim-de-semana, é preciso dar conta daquela casa e visitar por obrigação – amor a geração anterior. Encontrar às vezes alguns amigos, de quem se vai perdendo o contacto. E tudo recomeça. Este ritmo vai prolongar-se ao longo de uma existência da “triste geração que virou escrava” como diz Mia Couto.

Esta vida vai ter, está a ter, consequências nefastas sobre várias gerações. É o enquadramento ótimo para o individualismo, a competição, o salve-se-quem-puder. Mas não só. Estes cérebros mais jovens estão a ser moldados e têm probabilidades de vir a ter dificuldades de interrelacionamento, queixas psicossomáticas e outras patologias. E quanto aos mais velhos, os já moldados, “desmoldam-se”, entram em ansiedade, em depressão, em esgotamento (burn-out). Esta é a vida humana para que temos sido encaminhados nos países desenvolvidos. Nos países não desenvolvidos a vida é maioritariamente desumana, sobretudo quando se conhece os recursos mundiais.

Quando o mundo evolui tão rapidamente para a robotização, para a era digital, para a facilitação de trabalho, para a substituição de seres humanos por máquinas, era lógico sonhar-se que homens e mulheres poderiam trabalhar menos horas, dispor de tempo de lazer e de convívio com a família. Não foi assim. Parece que é necessário esgotar até à última hora “o suor do seu rosto”. E discutir cada minuto. Tudo por causa da produção, do “desenvolvimento”, do défice, das contas. Porque a vida, essa, vai-se esgotando.

Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, activista política

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