Um relógio de ouro e um palacete em ruínas

Dois irmãos que fizeram fortuna no Brasil no início do século XX quiseram construir duas casas iguais. Uma tem o interior em ruínas e está à venda. Na outra vive Lurdes que, à beira dos 100 anos, continua a tocar piano, como nos tempos de “papá” e “mamã”. Numa casa esbanjou-se, na outra conservou-se

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Uma vez por mês, Silviano Moreira abre o cofre da sua casa e admira o relógio suíço de ouro de bolso que ficou da fortuna brasileira do avô António.

O Patek Philippe de início do século XX, ainda com caixa de origem e certificado de garantia, foi o que restou da vida de luxo do antepassado rico. Isso e o palacete da direita, o que tem o interior despido e em ruínas. Já no palacete igual que fica ao lado, construído pelo outro irmão que voltou rico do Brasil, a paisagem doméstica dos tempos antigos manteve-se quase inalterada. Ali vive Lurdes Camacho que, a dois anos de fazer 100, continua a tocar piano, como no tempo de “papá” e “mamã”.

À primeira vista, sem atentar em pequenos pormenores sem significado — onde uma tem janelas a outra tem portas, uma fachada lateral tem azulejos verdes e a outra castanhos —, as casas parecem perfeitamente iguais. Quando, em Lordelo (concelho de Paredes), alguém se refere às casas é sempre no plural, porque sendo duas parecem ser uma. São edifícios irmãos, como os seus dois proprietários.

Não foram os irmãos António Dias da Silva Moreira e Arnaldo Dias da Silva Moreira que decidiram chamar-lhes “Casas Altas”. Quem as baptizou foi o povo de Lordelo, que era uma aldeia ao tempo do regresso dos afortunados à terra de origem, por volta de 1912. Mas a designação, que permanece até hoje com Lordelo feita cidade, não teria decerto desagradado aos irmãos Silva Moreira.

António e Arnaldo quiseram-nas construídas com altura superior à da torre sineira da igreja matriz, então o maior edifício do povoado. Foram edificadas, não por acaso, num alto. Para que pudessem tudo alcançar, rio Ferreira e o casario baixo, e ser perfeitamente visível o sucesso dos seus regressos. Saíram de Lordelo filhos de lavradores, tornaram “fidalgos”.

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Por fora, as “Casas Altas” de Lordelo parecem iguais, mas o seu destino foi radicalmente diferente Paulo Pimenta

As voltas que o bom gosto dá

António, aos 14 anos, foi o primeiro a partir, vindo de uma família de lavradores com “uma dúzia de irmãos”. Chamou depois um irmão mais novo, Arnaldo. O destino estava em voga e muitos partiam da região Norte. O Brasil, no início do século XX, precisava de imigrantes, em parte para suprir as necessidades de mão-de-obra que se seguiram à abolição da escravatura, contextualiza o arquitecto Domingos Tavares, na sua obra Casas de brasileiro (Dafne Editores).

Na região de partida destes irmãos há muitas histórias que, à saída, parecem parecidas com as deles, mas não ao regresso. Foram uma minoria “os brasileiros” tão visivelmente bem-sucedidos. Alguns deixaram a sua marca em forma de vistosas habitações espalhadas pelo litoral Norte. Domingos Tavares chama-lhes “as mais antigas casas de emigrante”. São habitações cuja vistosa estética foi, à época, reputada como sendo de gosto duvidoso e até gozada por escritores como Camilo Castelo Branco ou Júlio Diniz mas que, em muitos casos, acabaram a ser hoje imóveis classificados. Assim se vê as voltas que o bom gosto dá.

“O meu avô também foi para o Brasil mas voltou de lá tão teso como foi”, disse a Silviano Moreira uma conhecida. Já se sabe que “árvore das patacas” não abana para todos por igual, comenta.

A origem da riqueza do seu avô António — que, às contas de hoje (estimativa feita por um primo seu), andaria pelos 50 milhões de euros — sempre foi vaga. Sabe-se quase só que o avô viveu uns 23 anos no Rio de Janeiro e que enriqueceu a negociar em tecidos. E que, por volta dos 38 anos, voltou a Portugal milionário.

Silviano Moreira, 66 anos, admira, à distância, este seu avô António que ele não conheceu e de quem lhe chegou o relógio de ouro e a “casa alta” da direita — a que acabou sem recheio e em ruínas e que há seis meses teve de se pôr à venda.

Por fora, a casa parece transpirar ainda a sólida opulência do tempo da sua construção, edifício com duas torres encimadas por cata-ventos em ferro forjado. Mas, por dentro, é uma sombra do que foi.

Há buracos no tecto trabalhado por onde entra a água da chuva. Ao lado da escadaria que continua grandiosa apenas em tamanho está um móvel de casa de banho em contraplacado branco e um fio que funciona como extensão para fazer chegar electricidade a uma pessoa que vê televisão na penumbra sentada num sofá velho. A outra pessoa que está autorizada a pernoitar na casa não está de momento. O palacete funciona como uma casa devoluta onde os herdeiros, Silviano e mais cinco familiares, deixam ficar quem não tem mais onde ficar.

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Lurdes Camacho, 98 anos, continua a tocar piano, como no tempo de “papá” e “mamã” Paulo Pmenta

Uma viagem no tempo

É preciso visitar a casa ao lado para imaginar o passado luxuoso da casa em decadência, como se para uma viagem no tempo bastasse atravessar um portão ferrugento.

Esta outra "casa alta" é habitada e ali vive Lurdes Camacho, 98 anos, a filha do outro irmão proprietário, o tio-avô de Silviano, Arnaldo. Ali se fica com uma ideia de como foi em tempos a casa arruinada de que Silviano é herdeiro — tinha os mesmos candeeiros de tecto, os mesmos móveis nobres e imponentes com tampos de mármore, as mesmas paredes com desenhos pintados à mão. “Eles viviam à grande. Só compravam o que era top”, aponta Silviano, afagando a parede que imita os veios do mármore.

Na casa arruinada, um recheio parecido com aquele foi, ao longo dos anos, sendo subtraído até quase nada restar dos tempos de luxo, sem ser os tectos trabalhados e os chãos de madeira maciça. E o relógio de ouro que o pai de Silviano Moreira ainda foi a tempo de salvar do prego e que o neto-herdeiro mira uma vez por mês. “Já não o vejo há três semanas.”

Já Lurdes conseguiu manter a paisagem doméstica da sua infância quase inalterada. É uma senhora franzina e elegante, lencinho de seda verde em torno do pescoço, alguns anéis de ouro nos dedos que percorrem as teclas do piano da sala onde nos mostra que continua a tocar, como nos tempos de “papá” e “mamã”. Assim se habituou a prole de nove a tratar os pais, nos tempos em que as filhas-meninas aprendiam piano com uma professora particular que ia a casa, e os filhos-meninos violino.

Na casa de Lurdes Camacho, a paisagem doméstica dos tempos antigos manteve-se quase inalterada Paulo Pimenta
Uma das muitas imagens a preto e branco que povoam as paredes Paulo Pimenta
Paulo Pimenta
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Na casa de Lurdes Camacho, a paisagem doméstica dos tempos antigos manteve-se quase inalterada Paulo Pimenta

Ali surgem todos, tocadores de piano e de violino, agrupados na fotografia de família com a fachada central da casa como pano de fundo. É uma das muitas imagens a preto e branco que povoam as paredes. Na foto de grupo apenas surge uma das cinco criadas, farda branca rendilhada. As outras quatro estariam a trabalhar.

Nesse tempo, os nove meninos da “casa de lá” e os sete da “casa de cá” era como se vivessem todos o mesmo mundo, separados pelos muros do exterior da aldeia e unidos entre si pelo portãozinho interior que ainda une os dois jardins pela parte de dentro.

Os espaços exteriores das duas casas eram onde faziam teatros uns com os outros, onde simulavam vidas de faz-de-conta, ali vendiam víveres em lojinhas inventadas, ali os compravam. Quando um era castigado pelo progenitor de um dos lados, os primos do outro lado ficavam tristes por solidariedade; quando um ficava doente, era como se os primos padecessem também da maleita, lembra Lurdes.

Quando saíam à rua, em crianças, também era como se fossem todos iguais, de tal forma eram diferentes dos demais meninos de Lordelo. As “Casas Altas” eram, há cerca de 100 anos, o único sítio na aldeia onde à noite as divisórias estavam iluminadas e onde havia casas de banho, três, com o conforto da água canalizada, da fria mas também da quente.

Os meninos das “Casas Altas” ainda fizeram a escola primária na aldeia, a quem o edifício tinha sido generosamente oferecido pelos respectivos pais — a placa assinala o acto de generosidade. Quando os adultos não estavam a olhar, Lurdes lembra-se de os coleguinhas “fazerem pouco deles”, de lhes chamarem “os fidalgos”.

O filho “gabiru”

Lurdes sabe, o primo informou-a, que “a casa de lá” está à venda. Entristece-a abrir o janelão da sua cozinha e olhar o pequeno portão por onde hoje só se consegue passar desviando um ramo grosso de videira que, com o não uso, cresceu para se tornar tronco, dificultando a comunicação entre as duas casas. “Nunca mais lá fui. Faz pena.”

Na casa da prima Lurdes se vê como numa casa se conservou, e na outra se esbanjou e estragou, diz Silviano. Num tempo em que os homens morriam muito mais cedo do que as mulheres, a explicação para os destinos diferentes que tiveram as casas simétricas está nas mulheres de Lordelo com quem os dois homens de fortuna acabaram por se casar. Eram duas irmãs também, Carolina e Maria, mas não podiam ser mais diferentes. Silviano Moreira é um homem que dá explicações simples: havia a irmã Carolina (a sua avó), que era “mais morconita” [como quem diz, mais parada], e a outra, a Maria, que “era mais reguila [mais esperta]”.

Mas não foram só as personalidades contrastantes das irmãs que casaram com os homens de fortuna que ditaram os destinos diferentes das casas altas. António, o irmão mais velho, que foi quem mandou chamar o outro para o Brasil, não viveu a casa, morreu cedo, corria 1918, ano do final da sua construção.

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Silviano Moreira com a prima Lurdes: a casa onde ele ainda nasceu foi decaindo. Agora raramente lá reentra. Aguarda comprador Paulo Pimenta

Vendo-se a avó Carolina viúva, sozinha, com sete filhos pequenos, deu-lhe o pesar para se dedicar inteiramente a Deus. Levantava-se às seis da manhã e corria para a igreja, tinha uma cadeirinha cativa no templo vizinho à casa e conta Silviano que era generosa com os santos, dava-lhes cordões e coroas de ouro, além “da procuração de plenos poderes” ao pároco de então, que terá aproveitado bem a generosidade da pia senhora, ironiza.

Com a mãe na Igreja, os sete filhos ficaram “ao Deus dará”. Três morreram novos, um dos quatro descambou em “gabiru”, descreve Silviano, talvez pelos efeitos da negligência materna, não sabe. Lurdes não tem dúvidas que a desatenção materna teve consequências: “Os daqui seguiram melhores caminhos que os de lá.”

O facto é que a católica mãe percebeu, a dada altura, que dentro de casa tinha de se proteger dos próprios filhos. “Dormia com a chave do cofre debaixo do travesseiro.” Nem isso impediu que o recheio da casa fosse diminuindo a olhos vistos.

A mãe de Silviano, quando foi pela primeira vez à casa alta da direita, lembra-se de ter elogiado o enorme candeeiro da entrada, “que lindo”. Um mês depois, à segunda vez que lá voltou, tinha sido vendido por um dos filhos.

Assim foi acontecendo com o recheio, vendido, estragado, penhorado, como o relógio de ouro que o filho “gabiru” pôs no prego e que ainda se conseguiu resgatar.

“Os filhos viveram principescamente.” Mas o luxo, do lado da casa do avô António, não chegou à geração de Silviano, a terceira, a dos netos. Chegou uma vida confortável, mas do luxo só restou mesmo o relógio de ouro que Silviano vai ver ao cofre uma vez por mês. Às vezes sente-se tentado a vendê-lo, avaliaram-no em 50 mil euros, mas ele vai resistindo. Dava para um Mercedes, diz, mas não para mandar restaurar nem metade da casa.

A casa, onde ele ainda nasceu, foi decaindo. É preciso dinheiro para não deixá-la ir. E Silviano, por mais que lhe custe “ver como era e como é”, desistiu. Como é que se mantém uma casa onde eram precisos cinco criados internos? Raramente lá reentra. Aguarda comprador.

A Lurdes custa-lhe muito imaginar a “casa de lá” vendida a um estranho, ver aquele portão interior para a casa-irmã fechado para sempre. “Eu também tenho tristeza de vender, mas o que é que eu hei-de fazer?”

As casas que eram as mais altas da aldeia de Lordelo agora são mais baixas que o único e longo bloco de apartamentos da cidade de Lordelo, urbe com traços de modernidade, veja-se a pastelaria com “cake design”.

O centro de Lordelo cidade já não fica junto à igreja, agora é onde fica a junta de freguesia da cidade, que ainda não tem câmara municipal, e a Pizzaria Ricardo. Dali tem-se vista para as “Casas Altas”. O nome ficou, mas não mais que isso.

“Ficámos com uma casa como outra qualquer”, diz Lurdes. Hoje, das poucas vezes que sai à rua em Lordelo, poucos sabe quem ela é, quem foram os seus. Já ninguém a reconhece como uma fidalga das “Casas Altas”.

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