“Quis ser o Jacques Cousteau, mas enviei um currículo num anzol para uma agência de publicidade”

Tiago Teixeira da Cruz é copywriter na agência de publicidade J. Walter Thompson. Antes de se tornar o cérebro por detrás de campanhas publicitárias bem conhecidas, quis ser biólogo marinho. De certa forma foi essa primeira paixão que o levou à publicidade, espécie de amor tardio, mais maduro.

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Tiago Teixeira da Cruz conta a sua primeira paixão Enric Vives-Rubio

Passei toda a adolescência a preparar-me para ser biólogo marinho. Insistia nisso contra todas as evidências - tinha péssimas notas em todas as disciplinas de Ciências apesar do enorme esforço e óptimas notas nas línguas e na História sem ter de me esforçar. Mas eu tinha uma ligação enorme ao mar e à natureza. O meu avô pescava, o meu pai pescava, eu comecei a pescar e a fazer surf. Quando era pequeno coleccionava os programas BBC Vida Selvagem, fui voluntário na Liga para a Protecção do Ambiente e andava envolvido num grupo de ornitologia. Todos os anos enviava uma nota de 10 dólares para a Greenpeace. Andei a arrancar eucaliptos nas planícies alentejanas, indignado. O meu melhor amigo, um ano mais velho do que eu, ficou à minha espera na Universidade do Algarve, pensando que eu me juntaria a ele para estudar Biologia marinha. Na véspera de me matricular comecei a pensar o que seria a minha vida: ’Vou acabar a dar aulas num liceu deste país’. ‘Vou fazer a mesma coisa todos os dias’. ‘A evolução na carreira é nula’. ‘Quero uma profissão que me motive’. 

Ainda hoje não sei o que me passou pela cabeça. Sabia que queria ganhar algum dinheiro e divertir-me e o resto foi intuição. A minha vida está cheia disso - a intuição e o acaso levam-me para onde tenho de ir. Dou por mim a inscrever-me no IADE em Marketing e Publicidade. Eu tinha um tio que trabalhava em publicidade, mas não era criativo. E quando éramos miúdos, eu e o meu irmão entretínhamo-nos com um jogo que consistia em tentar adivinhar o anúncio que passava na televisão ao ouvir a primeira nota, ao ver o primeiro plano do filme. Quem dissesse ‘Corneto!’, ‘Nivea’! mais rápido, ganhava. Fora isso, o meu único contacto com a publicidade foi aquele quente mês de Agosto passado a montar molduras para anúncios na estação de Campolide. A minha primeira experiência nesse mundo foi trabalho braçal e não foi particularmente agradável. Olhando para trás, acho que aquilo que realmente me levou à publicidade foi o desejo inconsciente de querer criar algo. Eu nunca tive grandes dotes artísticos - e há arquitectos e artistas na família -, sempre li muito e escrevia bem porque lia muito, mas ninguém olhava para mim e dizia: ‘Ora aqui está um futuro génio da literatura’. Mas havia essa vontade criadora em mim e a publicidade tem o acto da criação e permite a exposição pública, o reconhecimento. Tenho um certo gosto pelo poder e pela possibilidade de influenciar os outros, desde que isso seja bem utilizado. 

Depois de três anos de rambóia, de surf e de muitas faltas às aulas, decidi começar a trabalhar numa micro-agência de vão de escada de Relações Públicas. Trabalhava durante o dia, era muito mal pago, estudava à noite e não me sentia minimamente realizado. O sonho de ser criativo estava longe. Já depois de terminar o curso vi um anúncio num jornal em que uma agência de publicidade, a Markimage, estava a recrutar para todas as posições, inclusive para criativo. Saí do IADE sem ter desenvolvido um único anúncio e não tinha nada para mostrar no portfolio. Então, peguei no meu currículo, espetei-lhe um anzol de pesca e fui deixá-lo à agência. No dia seguinte recebo um telefonema da secretária do director. ‘Está com sorte, o hobbie do Dr. Adriano Eliseu é a pesca. Passe cá amanhã.’ A entrevista correu lindamente, fui chamado para uma segunda entrevista e finalmente fui contratado. Acertámos o salário e ao despedirmo-nos junto ao elevador, ele pergunta-me: ‘Mas afinal queres ser account ou criativo?’ Eu disse-lhe que ia para o que fosse preciso, mas que preferia ser criativo. E foi assim que me tornei criativo. 

O trabalho correu bem. Tão bem que ao fim de seis meses já tinha uma proposta para mudar para uma agência melhor. O amor à primeira vista aconteceu no meio disto tudo. Apaixonei-me pela publicidade quando comecei a ver as minhas ideias nas páginas das revistas, nos ecrãs de televisão. Fiz um anúncio para a Hewlett-Packard e tive a ideia de substituir os computadores por chitas. Num espaço de escritório onde deveria haver um computador estava uma chita. Era uma metáfora para a velocidade dos novos computadores e aquilo teve sucesso. Foi aí que pensei: ‘Quero fazer isto para o resto da minha vida. Consigo influenciar as pessoas e as marcas e ter ideias novas e criar algo diferente’. O primeiro encontro amoroso com a publicidade e lá arranjei forma de incluir os bichos… 

A partir daí comecei a devorar toda a publicidade que se fazia, a apreciar a classe e o humor da publicidade britânica, a admirar o brilhantismo da publicidade americana. Mas aquela que mais me influenciou foi sem dúvida a publicidade argentina. Os argentinos estão cheios de histórias só deles, o que se traduz num humor muito próprio e numa capacidade de se rirem de si mesmos. Na altura a publicidade portuguesa não tinha isso e eu pensei que era exactamente aquilo que queria fazer em Portugal - uma publicidade auto-irónica com histórias que só possam passar-se em Portugal e com os portugueses. Rejeito totalmente a tendência que temos por cá de querermos imitar o que se faz lá fora. Eu sempre quis criar produtos próprios e novos, não imitar ninguém. Foi assim que surgiu aquele anúncio das sopas frescas da Knorr - a sopa que era tão boa quanto as sopas portuguesas. Porque faz parte da narrativa nacional orgulharmo-nos, de forma um pouco caricata por vezes, de termos “os melhores produtos do mundo” - “a melhor sopa do mundo”, “o maior golfinho insuflável do mundo”… A mesma mentalidade fez-me pensar naquela história do “Euromilhões, a criar excêntricos todas as semanas”. A personagem do Sr. Nuno Cabral que compra o canal de televisão que a partir daí só vai exibir folclore transmontano só podia ser portuguesa. 

Passada a excitação inicial, aquela fase de afirmação - ‘Sou publicitário e quero ganhar prémios’ - caí numa crise existencial. A agência onde trabalho agora, J. Walter Thompson, estava a competir por uma daquelas empresas que concede créditos pessoais. Isto foi antes do estoiro da economia e de esses créditos serem criticados em praça pública. Eu estava a criar uma campanha e senti-me mal a fazer aquilo. Naquele momento vacilei, senti-me frustrado. ‘Em que é que o meu trabalho contribui para a sociedade?’, ‘Ando aqui a fazer anúncios efémeros de 30 segundos’, ‘Estou só a ajudar a vender. É fútil e vazio’. Consegui dar a volta quando percebi que a publicidade pode ser posta ao serviço das marcas para criar coisas relevantes para a sociedade. As ideias não se resumem aos anúncios de TV ou de rádio. As ideias ficam. Quanto à tal empresa de crédito, tivemos uma ideia que passava por mudar a mentalidade e o comportamento dos consumidores, apelando ao consumo responsável - só em casos de extrema necessidade - e desaconselhando o consumo fútil. Perdemos o concurso. 

Esse processo ocorreu numa fase de transição em que o meu trabalho passou a ter maior relevância e a ser feito com outra maturidade. Eu procuro sempre a verdade nas histórias que conto em publicidade. Acredito que quando contamos uma verdade ou nos inspiramos numa verdade, o trabalho é mais relevante e toca mais as pessoas. E a publicidade hoje usa muito a realidade como influência, entra nos caminhos do jornalismo, do documentário, utiliza essas ferramentas. Quando comecei a devorar publicidade tinha ídolos - o Marcello Serpa, o Kessels Kramer, o Lee Clow, o Bill Bernbach e o John Hegarty. Hoje não tenho ídolos. Os ídolos são as pessoas a quem vou buscar as histórias que conto. Gosto de contar histórias emocionais em publicidade - histórias que falam sobre pessoas e comportamentos. O meu director criativo já encontrou um nome para esse tipo de anúncios, diz que são “um Cruz”. Foi isso que fizemos na última campanha da GALP para apoiar a selecção no Campeonato da Europa. Aquele fio condutor dos emigrantes portugueses que deixam tudo em campo em França, que se desunham, que conquistaram um lugar de respeito através do mérito, do trabalho, do talento. Nós nunca sabemos qual o efeito directo de uma campanha publicitária, de uma ideia, mas acho que bateu tudo certo. Vários jogadores da selecção têm histórias parecidas, são filhos de emigrantes. E a comunidade portuguesa viu uma grande marca reconhecer-lhes as histórias de vida, sem caricaturas, sem piadas do costume. Foram levados a sério e as suas histórias foram eternizadas nesta campanha. 

Na verdade, a minha grande inspiração, o clique que deu origem a tudo isto foi o meu avô que era arquitecto e que fez inúmeras obras estatais como liceus, portos, estações de correio - em Portugal e nas ex-colónias. Ele tinha uma conduta moral e social irrepreensível e as obras que ele criou não são efémeras. Estão por aí. Quando questionei o que fazia era isso que me inquietava - o que vai ficar daquilo que eu faço. Eu não sou artista, nunca poderia ter sido arquitecto como ele. E à semelhança do que aconteceu com o meu avô, eu não assino as obras que crio, o meu nome não é público dessa forma. Mas tenho a esperança de que as ideias e as histórias que eu crio permaneçam de alguma forma. A biologia marinha ficou nos valores de respeito pela natureza que transmito ao meu filho e nos fins-de-semana, sempre passados junto ao mar. 

Oito portugueses conhecidos nas áreas da música, literatura, publicidade, política, empresas, solidariedade e ciência contam, nesta série, a sua história

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