Piranhas, pianos hipnóticos e a lição de Billy Bragg em Sines

Los Pirañas, Bachar Mar-Khalifé, Fumaça Preta e Norberto Lobo mostraram no último fim-de-semana do FMM Sines que nem tudo acontece no Castelo. Mas viria de Billy Bragg a súmula perfeita do que deve ser e significar este festival.

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Billy Bragg Mário Pires
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Bachar Mar-Khalifé Mário Pires
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Norberto Lobo Mário Pires

Primeiro, há um falso arranque. Ou um falso alarme. Por detrás do palco onde o ganês Pat Thomas e a Kwashibu Area Band põem em marcha um impressionante concerto de comunhão com o público através do highlife, uns tímidos sinais de fogo-de-artifício sobem para o céu. Mas sobem pouco, mal se levantam do Castelo de Sines e caem sem glória.

Faz já parte da história do Festival Músicas do Mundo (FMM) esse momento em que concerto final no Castelo e fogo-de-artifício coincidem, carregando ainda mais no ambiente festivo em que é vivida a despedida de mais uma edição. Acontece que no sábado, portanto, houve uma partida extemporânea a que apenas se seguiu a música incansável de Pat Thomas. E o público, familiarizado com esta ritualização do adeus até ao ano seguinte, ainda se perguntou, de pescoço no ar e olhos sempre a escapar-se para o céu nuns minutos de incerteza, se haveria mesmo a habitual celebração ou se teria sido reduzida a uma pífia versão. O verdadeiro fogo, claro, chegaria pouco depois.

Na 18.ª edição, há uma relação de familiaridade e confiança indesmentível entre público e FMM. Há estes pequenos sinais de que tudo permanece igual num festival que se propõe encerrar a sua programação paga (haveria ainda três actuações junto à praia) com o concerto de um senhor de que muito poucos terão ouvido falar (Pat Thomas), cujos temas é de duvidar que alguém conseguisse cantarolar horas antes e cuja música em que se inscreve (highlife, originário da Nigéria e do Gana) será parte das preferências e dos hábitos de escuta de uma escassíssima minoria.

Nada disso importa na ligação entre público e músicos no FMM: as primeiras filas vibram como se assistissem ao artista por que anseiam anos a fio, a multidão deixa-se embalar por uma música cujo único currículo que importa é existir ali, naquele momento, e a generosidade dos dois lados conduz a juras de amor eterno e a um tal enfeitiçamento que, mesmo após o encore da praxe, continua a ouvir-se “Kwashibu Area Band” gritado em coro a plenos pulmões e os músicos, autorizados a subir mais uma vez a palco, saltam do camarim com um sorriso de felicidade espelhado nos milhares de rostos que encontrarão logo em seguida.

Assistíramos a esse mesmo efeito, horas antes, quando o trio do músico franco-libanês Bachar Mar-Khalifé terminou a sua actuação no palco da Avenida da Praia. Acabara de ter lugar uma das actuações mais extraordinárias desta edição (mas também de todo o historial) do FMM. Músico de uma soberba técnica pianística que não esconde a sua formação clássica, desembrulhou um concerto de gestação lenta, em que é quase impossível perceber como avançou de uma melancolia jazzística e clássica (Madonna) até um final de sublimada música de discoteca (Lemon) na linha do chaabi magrebino.

A partir de uma exploração de contrastes constante e de uma construção muito cara ao jazz (apresentação do tema, improvisações ou variações que se vão desvelando entre os músicos, regresso ao tema), Bachar fez não apenas uma inteligente gestão do concerto – de uma acalmia bela e contemplativa a caminho de uma desbragada exaltação final – mas deixou também bem claro como um músico (e a sua música) pode ser várias coisas, à vez e em simultâneo, sem ter de enveredar por um estilo e deixar-se enganar pelas virtudes da fidelidade. À frente de um trio notável, o piano clássico/jazzístico e o teclado electro-arábico (por vezes tocados ao mesmo tempo) teriam um mesmo sabor hipnótico.

Quando, no final, e sem margem para prolongar o concerto, nos cruzamos com Bachar nos bastidores, os três músicos espreitam do camarim, emocionados com as vozes que em frente ao palco ainda gritam pelo seu regresso.

Fora do Castelo

O concerto de Bachar é também exemplo do muito que se passa fora das noites mais massificadas do Castelo de Sines. Na Avenida da Praia, antes de jantar e madrugada dentro, o FMM permite-se assumir outros riscos – como deixar que Los Piranãs cumpram com a promessa “vamos meter um pouco de ácido nisto tudo”. Significa isto que os colombianos (uma outra banda de Eblis Álvarez, homem dos Meridian Brothers), que pegam em músicas já muito dadas à alteridade como vallenatas, cumbias ou chichas, passam tudo pelo filtro do rock psicadélico, e devolvem algo que parece produto de uma maravilhosa febre tropical. Tudo é tropical e tudo é demente na música dos três. Até quando enveredam por sons policiais só dá para imaginar um detective de camisa havaiana a investir pela selva, na perseguição a animais de olhos esbugalhados. É mais delirante ainda do que isto e qualquer semelhança com a normalidade é pura coincidência.

Algo que também se pode dizer dos Fumaça Preta, banda liderada pelo percussionista luso-venezuelano Alex Figueira, outro caso de esquizofrenia tropical na noite de sexta-feira, a enfiar as mãos na música dos anos 70, a trazer à baila guitarras saídas tanto dos Black Sabbath quanto de Os Mutantes ou Rolling Stones, vocalizações à beira da selvajaria, gritos por “o mundo só precisa de amor” e um exercício contínuo de libertação. Tudo é desejo de expansão nos Fumaça Preta e, felizmente, não há muito por onde escapar-lhe.

Fora destes palcos mais concorridos, importa destacar ainda os dois admiráveis concertos vespertinos para guitarra solo, de Norberto Lobo e Filho da Mãe. Se Filho da Mãe impressionou pelas prodigiosas sequências de dedilhados, que se vão rendilhando em evocações do Mali, do inevitável Carlos Paredes ou de alusões ao flamenco, a partir de uma guitarra que se desdobra em vários loops que prendem os ouvidos, Norberto Lobo apresentou-se na sua sempre surpreendente exploração livre do instrumento, como se ao público fosse autorizada, por uma hora, a permanência no seu quarto enquanto ele vai desfiando exercícios que são pura dádiva para quem assiste. Começou por caminhos indianos, mergulhou-nos numa guitarra subaquática, aflorou a música brasileira, africana e a folk norte-americana, usou samples de voz, sempre no estrito ponto em que a exploração da guitarra nunca compromete uma busca incessante pela mais inquestionável beleza.

O pub de Billy Bragg

Voltemos ao Castelo de Sines para três momentos fundamentais destas duas noites. Por muito que Imed Alibi, Sebastião Antunes, Speed Caravan e David Murray com Saul Williams possam ter cumprido com as suas propostas, não há como falhar o destaque a Bitori, lenda do funaná, recuperado pela reedição recente de Bitori Nha Bibinha pela editora de referência Analog Africa, e cuja bonita passagem pelo Castelo de Sines na sexta-feira, de entrada livre, funcionou como um encontro justo com a numerosa população cabo-verdiana fixada na cidade alentejana. Foi um concerto em tom de festa, tal como o seria, horas mais tarde, a apresentação do projecto que une os fundamentais congoleses Konono nº1 ao projecto luso-angolano Batida.

O contagiante som distorcidos dos likembés dos Konono seria quase suficiente para manter em transe o público do Castelo, mas se é de música circular que sempre se trata com os congoleses, repetida até ao ponto em que esta parece existir não apenas nos instrumentos mas também no nosso próprio corpo, a presença de Batida e seus colaboradores (Selma Uamusse, AF Diaphra e Papa Juju) amplia esta espiral da qual não se quer sair. Duas sonoridades que partem da tradição e reinventam a história musical dos dois países, numa partilha inebriante (e que apenas pecou, excepcionalmente, por alguma redundância), ampliando e muito aquilo que o álbum lançado pela Crammed deixa como promessa.

Talvez por se impor esta ideia de contacto com instrumentos pouco habituais, foram bem sonoros os suspiros e desabafos de desilusão quanto o inglês Billy Bragg tomou o palco sozinho no sábado, acompanhado apenas da sua guitarra. Afinal, não vinha assim tão solitário. “Há músicos neste festival que trazem consigo os instrumentos dos seus países, eu trouxe comigo o tempo do meu país”, brincou com a noite amena que surpreendera o litoral alentejano. E a partir daqui, Bragg foi exímio na postura de pub com que guiou o concerto, dando voz ao seu excelente reportório em que as palavras nada têm de acidental e muito assumem de político, entremeado por tiradas sobre o futebol, a crise de masculinidade, a sua ausência dos palcos portugueses nos últimos anos por culpa da paternidade (agora que o little bastard vai para a universidade, Bragg já pode voltar a percorrer o mundo) e uma constante referência ao estado bizarro do mundo (alturas em que, confessa, se vira sempre para a música de Woody Guthrie).

Mas aquilo que Bragg deixou foi muito maior do que as suas canções (excelentes Milkman of human kindness, No one knows nothing any more, Sexuality, Handyman blues ou o clássico operário There is power in a union). Deixou-nos a esperança, a insubmissão mas também a responsabilização. A empatia vivida entre as muralhas do Castelo de Sines, a comunhão de que falávamos no início, tem de ser consequente e não pode resumir-se à duração de um concerto. Quando as guitarras ou os likembés se calam, aquilo que acontece no FMM (o interesse e respeito pelas culturas alheias, as palavras de ordem, o pulsar colectivo) tem de se espalhar pelo resto do ano. A história não acaba aqui.

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