A Europa vista pelo Presidente da República – (2) O lado de dentro

A deslegitimação democrática do processo europeu é a fonte da pressão referendária. E não, senhor Presidente, Portugal não “se sente bem na União Europeia”.

Voltando à intervenção do Presidente da República há duas semanas e acrescentando-lhe várias outras declarações entretanto feitas sobre a mesma matéria — Marcelo produz declarações a um ritmo, digamos, de forma eufemística, acelerado —, vamos agora ver o “lado de dentro” dessas declarações, ou seja, o que elas revelam sobre Portugal e a União. Este é, aliás, o aspecto pior dessas declarações, visto que Marcelo acaba por ser o porta-voz do atentismo voluntarista que explica por que razão a nossa consciência crítica e a nossa vontade cívica soçobram face àquilo que hoje a Europa é contra os interesses nacionais, insisto, contra os interesses nacionais.

Eu sou mais europeísta do que eles, porque estou consciente do caminho para o desastre que se está a seguir e mais próximo da Europa dos fundadores, que de há muito renegaram. E, sim, o facto de não haver sanções não justifica nenhum dos elogios que estão a ser feitos à União, porque eles assentam numa análise asséptica das razões por que não houve sanções.

O facto de não haver sanções foi o resultado de um combate político que se fez exactamente contra a Europa dos europeístas, em vez da atitude de submissão que era e é a norma. Se há mérito, não é da Europa das “regras”, mas do Governo português, que a contestou, mesmo que não o diga. Este combate travado pela primeira vez por um governo do lado débil do Sul é em si uma novidade, mas está longe de significar uma mudança qualitativa da União.

Se este sucesso tem continuidade, é o que se vai ver, espero que sim, mas duvido que tenha, em particular pela reafirmação do garrote do Tratado Orçamental, um instrumento contra o desenvolvimento económico dos países da Europa que mais precisam de alguma folga prudente, consistente mas continuada. Aliás, é com ironia que vejo o FMI juntar-se aos perigosos esquerdistas que falavam da reestruturação da dívida e do desastre que foi o programa da troika e, por maioria de razão, o modo como foi aplicado em Portugal. O recente documento do FMI é um libelo contra as políticas do Tratado Orçamental impostas pelo Eurogrupo e apoiadas com entusiasmo pelo Governo PSD-CDS, que queria, de forma pouco disfarçada, que Portugal sofresse sanções... pela política de 2016.

Usar o facto de não ter havido sanções para crer em intervenções avulsas, do Presidente, do ministro de Negócios Estrangeiros e até de dirigentes europeístas de partidos como o Livre, pretender que isso significa  que a Europa afinal funciona “bem” e os que a criticam não tem razão é mais uma cegueira a acrescentar a muitas outras que se repetem há quinze anos.

Aliás, se, nesta matéria, só houvesse direito a falar caso se tivesse acertado nalguma coisinha nestes últimos anos, nenhum europeísta teria sequer a possibilidade de dizer alguma coisa. Em democracia, há o direito de errar, mas a credibilidade dos europeístas é muito escassa. Desde pelo menos o célebre discurso de Joschka Fischer de 2000, o caminho é errado, só tem conduzido a desastres sobre desastres e falar de cegueira tem todo o sentido.

A cegueira de ter contribuído para o enfraquecimento da Comissão em detrimento do fortalecimento do Parlamento e do Conselho, a cegueira da Constituição Europeia vencida pelo “canalizador polaco”, a cegueira das discussões egoístas do Tratado de Nice, aquele que está debaixo do tapete, a cegueira de um tratado como o de Lisboa que não serviu para nada nestes anos de crise, a cegueira de ir tornando a cada dia que passa a União mais desigual, mais reduzida a directórios e por fim a um só poder, a cegueira da gestão do euro, a cegueira de ter tornado a solidariedade entre os países mais ricos a favor dos mais pobres num conflito entre diligentes e preguiçosos, a cegueira de ter aberto a crise das dívidas soberanas, a cegueira e, pior do que isso, a política da canhoneira, com a Grécia, a cegueira do Tratado Orçamental, a cegueira criminosa de querer ter uma política externa agressiva sem forças armadas, na Ucrânia, na Líbia, na Síria, a cegueira de engolir uma burocracia cada vez mais arrogante, que usa e abusa das fugas de informação, a cegueira de aceitar presidentes da Comissão cada vez mais fracos, — em todos estes passos houve quem criticasse e dissesse quais eram as consequências. Foram isolados como reaccionários face à marcha progressista da engenharia política europeia, apelidados de soberanistas (agora é um insulto), nacionalistas e extremistas. De cada vez que ganham um referendo, são apelidados de populistas, face à elite das elites iluminadas, que os perde. E as consequências previstas verificaram-se todas.

Voltando ao discurso presidencial, um dos seus pontos-chave é o ataque à proposta de referendo que foi feita pelo BE, caso houvesse sanções. O BE andou para trás e para a frente com a proposta, deixou-se enredar nas críticas do Presidente e do PCP sobre a não possibilidade de haver referendos a tratados internacionais. Claro que a questão não precisa de ser constitucional ou a pergunta ser sobre um tratado, até porque há muitas maneiras de perguntar ao povo português sobre a Europa sem violar a Constituição. Marcelo deve conhecer pelo menos vinte.

O problema é outro: é a demonização do referendo cuja proposta, seja sob que forma for, é considerado quase uma proposta criminosa e antinacional, própria de fascistas, nacionalistas, comunistas e diversos extremistas. É irónico que Marcelo seja hoje um porta-voz dessa demonização, ele que fez parte do partido com mais tradição referendária e que propôs ele próprio pelo menos um referendo. É irónico, insisto, que seja alguém do PSD que acha que fazer um referendo é quase um crime, quando uma das reivindicações históricas do PPD e depois do PSD foi a realização de um referendo em matérias constitucionais, e que homens como Alberto João Jardim regularmente proponham um referendo, na tradição, aliás, de Sá Carneiro. E que se esqueça que não passou muito tempo desde que PSD e PS foram a votos com a promessa de levar a referendo qualquer novo tratado europeu que implicasse alterações na Constituição, promessa que abandonaram pela porta baixa quando os franceses queriam ultrapassar o chumbo da Constituição, para fazer a fraude que é incluir no Tratado de Lisboa aquilo que tinha sido rejeitado na França e na Holanda.

Este aspecto da crise democrática da União, que desde essa altura não fez mais do que se agravar, é algo de que os europeístas não falam nem têm em consideração. E bastava isso para olharmos com um olhar muito crítico a actual União, entregue a um efectivo poder de uma só nação e dos seus aliados, ou seja, exactamente aquilo que os fundadores da Europa não queriam que acontecesse.

A perda de poderes dos parlamentos nacionais e dos governos mais frágeis da União, substituídos pela burocracia de Bruxelas, aumentou insidiosamente na última década e meia sob um pano de fundo doloso e de mentira. Sobre isso os europeístas entregaram a reivindicação soberana aos extremos, coisa para que nunca ninguém lhes deu mandato, nem tem qualquer sentido no modelo igualitário com que se construiu a União.

Aliás, por que razão é que pensam que a reivindicação referendária tem crescido, a não ser pela consciência crescente de que o bloco PPE-PSE que domina a Europa retira o pluralismo da discussão política da União para o entregar a maiorias pouco sadias, e de costas cada vez mais voltadas para a opinião popular? É por saberem que partidos como o PS e o PSD, assim como os seus congéneres europeus, não entram em conta com o crescente sentimento hostil à União Europeia, e que nenhuma discussão parlamentar exprime os seus ponto de vista a não ser rotulando-os de nacionalistas, extremistas, quiçá fascistas, que a pressão referendária aumenta.

À medida que a democracia nacional é sugada pela burocracia de Bruxelas e pelos países mais poderosos, que os parlamentos enfraquecidos e subordinados se transformam em entidades vazias, apenas resta às pessoas a exigência referendária. Se a democracia parlamentar funcionasse como devia, representando as opiniões reais e não directórios partidários, e o Parlamento tivesse os poderes de dizer que não em muitas matérias em que foi desapossado desse poder sub-repticiamente, a pressão referendária era menor.

Foi o que aconteceu no Reino Unido, é o que acontece por regra quando se leva ao voto popular medidas propostas pela União, que ou chumbam, ou passam ao milímetro quando não tem de se repetir referendos até dar o resultado “certo”. A deslegitimação democrática do processo europeu é a fonte da pressão referendária.

E não, senhor Presidente, Portugal não “se sente bem na União Europeia”.

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