Festival de Edimburgo devolve bilhetes de ópera controversa antes da estreia

Cosi fan tutte, encenada por Christophe Honoré, inclui cenas de violência e já foi acusada de racismo. O director artístico do Teatro São Carlos opina que o festival quer "preservar a relação de confiança" com o seu público.

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Cosi fan tutte já foi material de várias adaptações. Aqui, no São Carlos, em 2006 Nuno Ferreira Santos

Cosi fan tutte é o novo trabalho do realizador Christophe Honoré, que aqui encena a ópera de Mozart, numa co-produção entre o Festival de Aix-en-Provence, em França, e o Festival Internacional de Edimburgo, na Escócia. A estreia em França dividiu a crítica e o teor mais gráfico e violento da encenação fez com que a organização do Festival de Edimburgo, que estreará em solo escocês a ópera já em Agosto, tenha decidido oferecer ao público a devolução dos bilhetes antes de ela sequer subir ao palco. "Não queremos ofender ninguém". 

A organização do Festival de Edimburgo só viu a ópera de três horas e meia na sua estreia, no mês passado, em Aix-en-Provence, apesar de ser uma co-produção. Na sinopse do espectáculo, o festival informa o público de que esta é “uma interpretação provocadora e sexualmente explícita da ópera de Mozart” que contém “temas adultos e nudez” e que é impróprio para crianças. Além disso, a organização escocesa disponibilizou uma cópia da crítica feita por Zachary Woolfe, do jornal norte-americano The New York Times - que refere a forma como Honoré adicionou o elemento do “racismo volátil e violento à misoginia da ópera original". A ópera não se passa na Nápoles do século XVIII, mas na Eritreia dos anos 1930, época em que o país africano ainda era uma colónia italiana sob o poder de Mussolini.

Um porta-voz do Festival Internacional de Edimburgo, que disse ao jornal escocês The Scotsman que o festival só teve conhecimento de como era a peça após vê-la em França, explicou o motivo da decisão de possibilitar a devolução do preço dos bilhetes: “Se alguém que comprou bilhete acha que esta ópera não é para si e não quer vir, claro que vamos ajudar.” Os bilhetes foram postos à venda em Abril e há quem já tenha pago até 112 euros para ver Cosi fan tutte por Honoré. 

Nesta versão, os dois homens que tentam testar a fidelidade das suas amantes ao disfarçar-se, não se fazem passar por albaneses como no libreto original, mas sim por mercenários africanos. Zachary Woolfe descreve que, “cobertos de maquilhagem escura, os homens tentam persuadir as amadas – as suas irmãs – a dormir não apenas com estranhos, mas com estranhos negros, o que desperta o seu horror e propicia o tabu no desejo”.

O crítico afirma que o trabalho de Honoré “é para brancos, ou seja, para a maioria das pessoas aqui a assistir [em Aix-en-Provence]”. Isto porque os africanos em palco são “puxados e arremessados pelo chão e usados como fantasias e objectos da imaginação dos brancos em vez de serem tratados como pessoas.”

O crítico acrescenta que a maquilhagem escura que usam “é uma ferramenta teatral muito potente” e conclui que a produção é “uma encenação exigente e sombria que fala de forma demasiado clara para o nosso tempo".

Ken Walton, crítico de ópera do The Scotsman, descreve a decisão do festival como uma medida desencadeada pelo pânico. “Se vão exibir algo controverso – que devia ser de esperar dada a reputação de Christopher Honoré – por que não ter a confiança de o fazer sem pedir desculpa previamente?”

Walton defende ainda que cada espectador tem a responsabilidade de se informar e decidir os espectáculos que quer ou não ver. “Há várias críticas, há um vídeo da produção, por isso qualquer um pode fazer o seu trabalho de casa e formar uma opinião. Acho que o festival está a tentar salvar-se das críticas daqueles que inevitavelmente irá ofender.”

O inglês Patrick Dickie, programador e director artístico do Teatro Nacional de São Carlos, discorda da perspectiva do crítico escocês e diz ao PÚBLICO que “a organização provavelmente achou que, neste caso, pedir ao público que se informasse sobre o conceito desafiante desta ópera era exigir demais”. A relação entre o festival e a audiência é também, na sua perspectiva, um factor que terá pesado na decisão. “O Festival de Edimburgo conhece muito o seu público e provavelmente tomou esta decisão por querer preservar a relação de confiança que tem com ele."

É frequente que nas co-produções haja uma parte que toma a dianteira do projecto e “não terá sido a primeira vez que uma das partes só viu o espectáculo finalizado”. Apesar disso, Dickie acredita que é importante continuar a ter um olhar contemporâneo e a explorar novos ângulos sobre a ópera, “porque a audiência sabe distinguir entre uma má produção e uma boa produção feita com integridade e arte”.

Texto editado por Joana Amaral Cardoso

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