Manuel Jorge Marmelo e o paradoxo do autor

Eis o estatuto paradoxal do autor: agrilhoado à tarefa de fazer sentido a partir de um aparente nada, é um animal agarrado ao material da sua escrita, compelido por uma força que o transcende, mas que talvez emane de si próprio. Eis O Macaco Infinito.

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Manuel Jorge Marmelo regressa com um romance sobre a escrita enquanto “sortilégio do acaso”. Macaco Infinito reflecte sobre o estatuto paradoxal do autor Enric Vives-Rubio

Manuel Jorge Marmelo regressa com um romance sobre a escrita enquanto “sortilégio do acaso”. O Macaco Infinito reflecte sobre o estatuto paradoxal do autor. Servo de um deus cruel, agrilhoado à tarefa de fazer sentido a partir de um aparente nada, o escritor é o macaco infinito do teorema. Um animal agarrado ao material da sua escrita, compelido por uma força que o transcende, mas que talvez emane de si próprio. Dêem-lhe o infinito, e será outro Shakespeare.

Neste romance, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Mas apenas porque o fortuito e o incidental são, nele, parte determinante. Há um prostíbulo encabeçado por um facínora preso a uma cadeira de rodas. Este leva a cabo as experiências mais cruéis: desde a violência com que trata as mulheres que explora ao modo como força um dos funcionários a martelar a máquina de escrever até que uma obra de génio lhe saia dos dedos. Como no teorema segundo o qual um macaco sentado infinitamente à máquina acabará por emular Shakespeare, Paulo Piconegro quer resultado semelhante de Wakaso (nome nada inocente). O mais perto que este fica é uma frase que é um gémeo falso do Hamlet: “As coisas que acontecem não são boas nem más coisas”.

O bordel não pode deixar de simbolizar uma Europa em crise; o vilão sobre rodas dá a cara por outro que está à frente dos dinheiros do Velho Continente, ou seja, de tudo. Paulo Piconegro é o patrão, mas também o negativo do escritor, demiurgo coxo, apaixonado pelas belas-artes e capaz das maiores vilezas.

Em Uma Mentira Mil Vezes Repetida, havia um falso livro e um narrador “falsário”; em O Tempo Morto É Um Bom Lugar, um escritor-fantasma, um escritor renitente; agora, existe um escritor escravo, espécie de escritor cobaia. Acha que o escritor é a personagem mais interessante?
Não digo que o escritor seja a personagem mais interessante. O que me tem acontecido, nos últimos livros, é tentar reflectir à volta da própria literatura. A literatura tem-me permitido fazer uma série de jogos que são importantes para mim e que podem ser interessantes para o leitor. Entram por aquilo que é a oficina da escrita. E acabo por reflectir sobre o processo de criação, o que permite… escrever um livro. Mas não é por achar que o escritor é a personagem mais interessante. Estou mais perto dessa personagem do que estaria de um assassino em série, em que teria de fazer um esforço muito maior para me pôr nessa pele.

Alguém já disse que a personagem de Dom Quixote era a melhor imagem para definir o escritor: alguém que enlouqueceu por ter lido demasiados livros.
O Dom Quixote, desde logo, é um livro que temos todos de ter por referência, porque é o livro que dá origem àquilo que fazemos. E já inventa todos os géneros narrativos, todos estes jogos que é possível fazer fazer a partir da literatura. Eu sou dos que acham que aquilo que os escritores fazem e que, para algumas pessoas, pode parecer muito original, não o é. Porque já está tudo no Quixote. Mas o escritor não tem exactamente de enlouquecer por ter lido de mais. O que tem de fazer é passar a realidade por um filtro literário e, se calhar, nesse processo é preciso um pouco de loucura, porque é também distorcer a realidade.

Que parte da escrita é, para si, técnica e que parcela é arte? O que predomina?
Mais arte, para mim. Tem, sobretudo, algo de improviso. Não tenho um método de escrita, nunca faço as coisas do mesmo modo. A técnica é apenas a da escrita, a única que tento dominar com algum à-vontade. De resto, tudo aquilo que aparece no livro, a sequência dos capítulos, tudo isso é absolutamente improviso, instinto e… arte. Sou muito mais um músico de jazz, enquanto escritor, do que um intérprete de música clássica.

E aqueles autores que fazem planos…
Não. O único livro em que fiz um plano prévio foi o primeiro, O Homem Que Julgou Morrer de Amor (Campo das Letras, 1996).

Mas não correu bem?
Não, acabei por não tirar partido do facto de o ter planeado antes. A partir daí, passei a escrever deixando-me levar pelo livro. À medida que cresce, acaba por revelar o seu próprio caminho. Isto não é uma afirmação minimamente mística. Porque, de facto, a sensação que tenho é que, enquanto estou a escrever, acabo por servir de íman para uma série de coisas que andam à nossa volta, que estão no mundo, e para as quais me torno muito mais atento, e que acabo por incoroporar no livro. Só a título de exemplo, o modo como Wakaso, a dada altura, começa a ver programas da vida selvagem, sobre os macacos, aconteceu-me quando estava a escrever. De cada vez que ligava a televisão, ao sábado ou ao domingo de manhã, apareciam-me programas desses, e quase sempre sobre macacos. Portanto, aquela realidade acabou por entrar no livro sem plano prévio. Eu não tinha intenção nenhuma de pôr a personagem a ver esses programas, mas eles acabaram por vir ter comigo de uma forma natural.

Interessa-lhe mais o verosímil ou o efeito do texto? Por exemplo, os nomes de algumas personagens são mais apelatitivos do que plausíveis.
Acho que mais o efeito. Embora creia que, se eu conseguir fazê-lo bem, acaba por ser verosímil, por mais inverosímil que seja. Lembro-me de que em Uma Mentira Mil Vezes Repetida (Quetzal, 2011), muitas pessoas acharam inverosímil a possibilidade de alguém andar a tentar tornar-se célebre a escrever um livro. E, de facto, é. A situação é patética em si. Mas quem lê o livro acaba por acreditar naquela mentira. Toda a literatura é uma mentira à procura de uma verdade.

Albert Camus, num dos seus Cadernos, planeava usar uma notícia de jornal para dar consistência a um romace. Jorge Manuel Marmelo recorre aos noticiários da televisão, em O Macaco Infinito, aos documentários sobre a vida animal e, mais para o fim, também aos jornais. Qual é a importância dos media na construção do romance, do seu?
Tem sido grande nos últimos livros. E, muitas vezes, não se percebe. Por exemplo, no Somos Todos Um Bocado Ciganos (Quetzal, 2012), em que não há referência directa aos media, a história nasceu de uma reportagem que eu, na altura, li sobre um grupo de antigos artistas de circo que viviam com os animais, num terreno em Penafiel, ou em Paredes. E foi essa a imagem que me levou a criar aquele circo decrépito. Os media acabam por influenciar o que eu escrevo. No caso destes últimos livros, em que há citações, directas ou mais ou menos directas, de notícias, umas inventadas, outras verdadeiras, também me parece interessante incluir notícias falsas que podem ser verdadeiras. Neste livro, creio que não, que todas as notícias são verdadeiras, embora possa tê-las reescrito. Mas em Uma Mentira Mil Vezes Repetida, tenho notícias que, não sendo falsas, foram escritas por mim, a partir de coisas que ouvi. Os media são a minha forma de contacto com a realidade. Quem passa o dia inteiro a trabalhar acaba por não poder estar nos sítios, ter o contacto directo com as coisas. E como estes livros têm muito a ver com o estado do mundo e do país, a entrada dos media na estrutura do texto tem acabado por ser bastante natural.

E essa maior presença do mundo tem a ver com este tempo em que vivemos?
Tem mais a ver com a ideia que tenho de literatura. Não faz sentido escrevermos sem ter em conta o mundo que está à nossa volta. Creio que, mesmo quando se descrevem situações mais irreais, pelo menos no meu caso, elas têm sempre alguma coisa a ver com a realidade e servem como metáfora de alguma coisa que está à nossa volta. E sobre a qual eu creio que é necessário reflectir. Se a primeira obrigação de quem escreve é contar histórias – é para isso que serve a literatura desde sempre –, acho que, depois, o escritor tem de pensar o mundo que está à sua volta. Tem de haver alguma coisa que faça com que o livro não seja um mero exercício vazio, qualquer coisa que não traga mais do que uma história. Ainda por cima, estão todas inventadas…

É-se sempre jornalista, mesmo depois de o ser? Neste momento, é assessor de imprensa, o que não está assim tão longe…
Se, com a palavra “jornalista”, quisermos referir-nos a um modo de olhar para a realidade, sim. Acho que o jornalismo desenvolve um olhar mais crítico do que seria comum, que, depois, nunca se apaga. Agora, acho que até é possível manter esse olhar e ser quase antijornalista, no sentido de ser bastante crítico do modo como o jornalismo lida com algumas coisas.

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Um dos aspectos importantes parao livro é o facto de haver reproduções de quadros – O Jardim das Delícias e as Demoiselles d’Avignon. Isso reforça o sentido de simulacro, de logro e fingimento?
Tem a ver com isso, mas tem mais a ver com um aspecto que me pareceu interessante tratar, que se relaciona com aqueles chavões de póster de Facebook, segundo os quais a literatura e as artes salvam as pessoas, e esse tipo de coisas. Quando, na verdade, sabemos que a História está cheia de facínoras que fizeram coisas  horrorosas e que eram literatos e cultíssimos. Portanto, o Paulo Piconegro acaba por ser a personagem que ajuda a reflectir sobre isso. Ou seja, é possível ser um amante das belas-artes e, ao mesmo tempo, ser um filho da puta, para falar à moda do Porto.

Wakaso é metáfora do escritor. Escravizado pela sua prisão, o seu deus. Neste caso, Paulo Piconegro. Mas, ao mesmo tempo, têm pontos em comum. África, desde logo, mas também o facto de ambos terem perdido a mulher: Wakaso a fugir de África, Piconegro tendo ficado nesse contimente.
Nessa dimensão das personagens, na sua dimensão literária, o Paulo Piconegro e o Wakaso acabam quase por funcionar como o escritor e o seu duplo. Podem ser a mesma personagem desdobrada. Inclusivamente, fiz questão de que o narrador pudesse, em alguns momentos, ser confundido com um ou com outro. Pareceu-me que passa muito por aí a minha relação com a literatura. Mais uma vez, os tais jogos, a possibilidade de enriquecer as personagens, ao desdobrá-las e confundi-las. O Wakaso é tanto a metáfora do escritor como o Paulo Piconegro. Se calhar, o Piconegro é a metáfora do escritor mais obscuro, mas, ao mesmo tempo, mais culto; e o Wakaso é, eventualmente, a metáfora de uma escritor mais instintivo e que é quase obrigado a trabalhar para fazer a sua obra.

Curiosamente, há ainda uma terceira dimensão da escrita. A escrita segundo Aída. A escrita como reacção e testemunho. Ou será como catarse?
A Aída é a única que escreve por livre e espontânea vontade. Por isso é que acaba por ser tão pouco interessante para o livro. No caso da Aída, é quase a escrita como tratamento psiquiátrico.

Wakaso escreve porque é obrigado; Aída para se libertar da dor; e Jorge Manuel Marmelo?
Eu escrevo porque me dá um enorme prazer. Fez em Fevereiro vinte anos que publiquei o primeiro livro, e ainda há dias comentava que tenho muitas vezes a sensação de que os 700 ou 800 leitores que leram os meus primeiros livros são os mesmos que lêem agora. Porque é isso que os livros continuam a vender. E, obviamente, nestes vinte anos, em muitos momentos me questionei se valeria a pena o esforço. Para que é que eu estava a escrever? Se calhar, por isso é que os meus últimos livros andam tanto à volta da literatura e da reflexão sobre a literatura. Mas a verdade é que, mesmo em alguns momentos em que tenho vontade de deixar de escrever, ou pelo menos de deixar de publicar, a pulsão acaba por ser mais forte do que esta racionalização que acabei de fazer. Torna-se irresistível sentar-me à frente do computador e inventar um mundo. No fundo, é isso que os escritores fazem: criar mundos possíveis dentro de livros.

O facto de Paulo Piconegro estar numa cadeira de rodas não terá nada a ver com outra pessoa da nossa actualidade que também está nessa situação?
Sim. Está a falar de um senhor que, por acaso, é ministro das Finanças. O patrão do prostíbulo pode perfeitamente ser esse senhor. Na apresentação do livro, as coincidências entre a personagem literária e a personagem real eram de tal forma evidentes, que, no fim, eu fiz questão de pedir que não confundissem o dono do bordel com o Senhor Schäuble. Porque, obviamente, o Bar Mitzvá é uma metáfora desta Europa, ou, pelo menos, procura sê-lo, e o patrão tem algumas semelhanças com o patrão desta Europa. Embora o ponto de partida não tivesse sido o ministro das Finanças alemão, acaba por ser mais ou menos clara essa semelhança. Mas, também, quando escolhi um deficiente para cumprir esta função no livro, foi com uma intenção parecida com aquela de que falei há pouco, relativamente à relação entre a arte e o mal. Nós temos muitas vezes a tentação de olhar para os deficientes como coitadinhos, que merecem a nossa pena. E não é assim. E o deficiente pode ter tão mau carácter como os outros. Foi também uma forma de desmistificar esta ideia feita.

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