Não são quadros vivos, são quadros lívidos

40 anos após a estreia, há muito para sentir por aqui como se fosse a primeira vez e corrigindo a etiqueta de “filme decorativo”: o cansaço que devora, o esquecimento a que estamos condenados: Barry Lyndon, de Stanley Kubrick, regressa em versão digital restaurada.

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Barry Lyndon está incólume, sem sinais da usura do tempo. O que o habita terá sido pouco experimentado, teve poucas possibilidades de ser gasto. Há muito para sentir por aqui como primeira vez, e já passaram 40 anos: o tremendo cansaço que devora personagens, o que pode ser uma estreia para quem ficou preso ao carimbo de filme “decorativo”. “What does strenuous mean?”, pergunta uma criança, Bryan Patrick Lyndon, ao seu meio irmão, Lord Bullingdon. “An effort requiring strength”, responde o mais velho. Ainda jovens, o filho e o enteado de um arrivista social irlandês, Redmond Barry, usurpador de um nome, de um título e de uma riqueza pelo casamento com a Condessa de Lyndon, começam a saber da violência que os espera. Há poucos filmes assim — quase todos são de Max Ophuls, de Eric von Stroheim, alguns são de Visconti e há só mais alguns quantos... — em que as personagens são sufocadas pelos cenários e guarda-roupa, como manifestações de uma engrenagem imparável, e em que os actores parecem ser consumidos pela mecânica do próprio filme (e como se ficasse, em surdina, um documento disso).

Mas... aquela coisa de que um cineasta morre quando se transforma em fotógrafo... Teria sido isso, em 1975, o que se declarou que acontecera a Stanley Kubrick, “fotógrafo” cúmplice de John Alcott (o director de fotografia) na documentação da vida privada do século XVIII através da pintura de Watteau, Gainsborough ou Fragonard e da luz natural e das velas. Era essa a “obsessão” – a “história” das lentes da NASA concebidas para fotografia de satélite que permitiam filmar com a luz das velas, só se falava disso ... – e escureceu o que estava à volta, se calhar o que estava dentro, para se destacar a figura de um recluso a criar no vácuo. O New York Daily escreveu: “Barry Lyndon é um filme egocêntrico, feito por um homem que perdeu o contacto com os seus pares, os críticos e a audiência” — Kubrick e Alcott fazendo lentos e elegantes zooms dentro dos “quadros” que davam prazer à retina mas frustravam possibilidades de catarse, ou de empatia...

O mito do artista isolado, incapaz do contacto humano, megalómano, levedava por esses anos. Não se soube bem o que fazer com Barry Lyndon, como integrar essa lânguida afectação — o século XVIII, a novela pícara de William Thackeray, os trambolhões de um fura-vidas interpretado por um fraco Ryan O’Neal — depois do tonitruante delinquente Alex DeLarge, interpretado por um carismático Malcolm McDowell, numa Grã-Bretanha futurista (Laranja Mecânica, 1971). À medida que a obra de Kubrick progredia, o filme parecia ir sendo esmagado. Aconteceu o mesmo com outro filme de época, com outra obra e com outro cineasta, e nesses mesmos anos, Daisy Miller, Peter Bogdanovich, 1974.

Hoje, e no inevitável ciclo de reapreciações que favorece (re)descobertas, é mais evidente que Barry Lyndon não “anima” figuras dentro do quadro — estratégia que seria decorativa –, antes reforça a sua impotência, a impossibilidade de escaparem a uma ordem que as determina. Repõe a sua imobilidade. Uma vela, uma paisagem, uma carruagem... ou uma voz-off sublinham a engrenagem que obriga as personagens ao movimento, para as deixar no lugar inicial. Um filme cuja relevância era difícil de assinalar dentro de uma obra, passou a ser ponto de passagem obrigatório. Numa narrativa, bem kubrickiana, de violência e despersonalização, Barry Lyndon é peça de apoio entre Laranja Mecânica e Full Metal Jacket/Nascido para Matar (1987): são três filmes sobre “máquinas” opressoras, desagregadoras da individualidade, “máquinas” de despersonalização – o filme de 1987, sobre o Vietname, é mesmo um caso limite: sem personagens, já só com uma sucessão em série, filma o puro mecanismo a desenrolar-se, daí o seu efeito inapelavelmente frio e demonstrativo.

Redmond Barry (Ryan O’Neal), então, usurpador de um nome e de uma riqueza pelo casamento com a Condessa de Lyndon (Marisa Berenson): o realizador retira-lhe a centralidade de narrador protagonista das suas aventuras pícaras, posição que tem no livro de Thackeray, e cria uma voz-off que é uma exalação do filme, com a lucidez e a desafectação, irónicas e cruéis, a determinarem o big picture, o horizonte e limites que a peça de uma máquina, Redmond Barry, tem para evoluir — como a castradora voz de Hal para o astronauta Dave em 2001.... Essa mudança, acompanhada pelo (hoje assim percebido) visionário casting de Ryan O’Neal, atribuem a Barry Lyndon, filme, um peso, um sufoco, trágicos: o oportunista é também vítima da sua candura, da sua crença no apelo social. Uma das coisas mais violentas do filme é sentir a vitalidade do corpo de Barry (e da mãe cúmplice) a ser consumida logo no percurso ascensional — vejam-se os sinais de quebra, que aparecem não se sabe vindos de onde, nos rostos, na pose de Ryan O’Neal e de Marie Kean.

Ryan O’Neal, então. Sempre se disse que era o elo mais fraco. Vinha de Love Story (Arthur Hiller, 1970), de What’s Up, Doc? (1972) e de Paper Moon (1973) – ambos de Peter Bogdanovich, num deles atarantado perante os ardis de Barbra Streisand, no outro desafiado pela filha criança (Tatum O’Neal, que era mesmo sua filha). Kubrick anteviu nesse all american boy de estrutura pouco densa uma tibieza, uma identidade tão facilmente maleável que o predispunha a ser “carne para canhão”, como as futuras figuras de Full Metal Jacket. Numa conversa entre os críticos Jason Bellamy e Ed Howard (Slant, 2011), Barry é integrado numa linhagem kubrickiana do homem que falha, simbolicamente castrado (e Barry perde a sua perna...), figura que fechou, com Tom Cruise, a obra do cineasta: chamou-se De Olhos Bem Fechados (1999) esse filme, era uma adaptação de Traumnovelle, de Arthur Schnitzler, e foi um projecto que Kubrick quis desenvolver na altura de Barry Lyndon. Nesses diálogos entre Bellamy e Howard, Ryan O’Neal é descrito como “memorably forgetable”. É uma síntese poderosa do desígnio da personagem. É o destino de todos nós, ricos e pobres, anuncia-nos o narrador omnisciente de Barry Lyndon: vamos ser esquecidos.

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