O povo é, ou não, quem mais ordena?

Que se respeite o direito dos cidadãos a serem ouvidos… e obedecidos.

O referendo realizado no Reino Unido no passado dia 23 de Junho, e cujo resultado foi o triunfo da proposta de o país sair da União Europeia (mais conhecida como “Brexit”), serviu também para mais uma vez – embora tal nem fosse necessário – denunciar e desmascarar a hipocrisia de muitos políticos e comentadores que, apesar de frequentemente insistirem na necessidade de aproximar os governantes dos governados e de aumentar o interesse e a participação dos cidadãos na “coisa pública”, não hesitam em vituperar estes se e quando decidem fazer a escolha “errada”. Afinal, o povo é, ou não, quem mais ordena?

Aparentemente, não, atendendo às reacções exageradas, hiperbólicas, até com tons apocalípticos, que se sucederam e multiplicaram após uma consulta popular que, concorde-se ou não com o desenlace, constituiu um exemplo de maturidade democrática. Como é evidente, o referendo não é algo que preferencialmente se deva fazer em situações de crise aguda, emergência ou mesmo de conflito civil e/ou militar; é melhor utilizado... e útil em democracias consolidadas e estáveis. Porém, e obviamente, por algum assunto e em algum momento tem de se, convém, começar. É pois de rejeitar, neste âmbito, a sobranceria, a arrogância paternalista de tantos “estadistas” – como o actual (p)residente da república portuguesa – que afirma(ra)m que um referendo “é uma questão que (em Portugal) não se põe”. E porque não?

A estas supostas “vozes da razão” são contrapostos (negativamente) alegados “populistas” como Nigel Farage, (agora ex-) líder do UKIP, que se tornou o “rosto”, a personificação, da decisão que a maioria dos seus compatriotas tomou. O ainda deputado europeu do UKIP também fez, há que não o esquecer, campanha, e feroz, para... acabar com o seu próprio posto de trabalho, o seu lugar de deputado! Pelo que continuará, coerentemente, no Parlamento Europeu até terminar o seu mandato e/ou se concretizar, finalizar, a saída do RU; entretanto, renunciou à liderança do partido (também para dar lugar a outros), o que não impede que volte a tentar ser eleito para a Câmara dos Comuns. Farage não tem, obviamente, “fobia da Europa”. Tem, isso sim, “fobia” de uma entidade internacional com um elevado “défice democrático” denominada “União Europeia”. E tem-se insurgido contra a prática continuada de decisões radicais serem tomadas levianamente por governantes que consideram que eleições de quatro em quatro anos, e programas partidários generalistas e vagos, lhes conferem um mandato alargado para tudo e mais alguma coisa...

... Incluindo aceitar um “aprofundamento” contínuo da “integração” europeia, com as correspondentes perdas de soberania, transferências de poder (legislativo e não só) para um novo “Politburo” em Bruxelas, não autorizadas, não ratificadas, pelas populações dos respectivos países. E para aqueles que eventualmente considerarem exagerada a comparação com as práticas dos senhores do Kremlin sob a bandeira vermelha com a foice e o martelo, afirmo que o Tratado de Maastricht de 1992, que decidiu e definiu inicialmente o que viria a ser a União Europeia e, logo, a forma de consolidação e a expansão de um “bloco” que começara como uma comunidade económica, foi a continuação da “lógica” da Guerra Fria - algo de anacrónico, pois o Muro de Berlim caíra em 1989 e a URSS em 1991. O avanço da UE até abranger países do ex-Comecon contribuiu para o ressurgimento do nacionalismo russo e a eclosão de uma “guerra”… mais quente do que fria, de que a invasão da Ucrânia e a tomada da Crimeia constituíram exemplos culminantes… e preocupantes. E, tal como o referendo na Dinamarca (ao Tratado de Maastricht) também em 1992, este “Brexit” de 2016 é uma resposta dada pelos cidadãos, ou pela maioria deles, manifestando o seu desagrado depois de anos de abusos e de faltas de respeito. E, evidentemente, não é a causa da “divisão” e da “ameaça de fragmentação” que pairam, neste caso, sobre a sociedade britânica, mas tão só a expressão de uma e de outra, e que já existiam previamente.

Concomitantemente, nos dois maiores partidos do país existem clivagens internas fortíssimas; no entanto, tal não é algo que se deva lamentar ou até negar mas sim, pelo contrário, celebrar! Em relação ao Trabalhista, é de desejar que essas clivagens sejam suficientes para finalmente implodir esse antro obsoleto e mal frequentado por comunistas reciclados e anti-semitas mais ou menos declarados. Em relação ao Conservador, aquelas já tiveram a grande, enormíssima vantagem de honrar o legado, entre outros, de Winston Churchill e de Margaret Thatcher, ao forçar a saída, do cargo de primeiro-ministro, de David Cameron, que mostrou ser um falso conservador, um traidor, por ter promovido, qual esquerdista “fracturante”, a legalização do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo – um tema, curiosamente, que não lhe mereceu a convocação de um referendo, ao contrário do que fizeram, e bem, os seus “vizinhos” na Irlanda, país onde, por isso, a redefinição do matrimónio passou a ter a legitimidade que em Portugal, Espanha, França e no Reino Unido não tem.

Não se está a exigir que se realizem tantos referendos, nacionais e/ou locais, como na Suíça. No entanto, entre o “oitenta” (ou mais) daquela e o “oito” (ou menos) deste “jardim à beira-mar plantado”, onde só o aborto (por duas vezes) e a regionalização justificaram uma consulta popular, certamente que é possível conceber um modelo intermédio, equilibrado, de compromisso. Que respeite o direito dos cidadãos a serem ouvidos… e obedecidos.

Jornalista e escritor

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