A rua onde Hillary passava férias tem todos os Estados Unidos lá dentro

Scranton, um bastião democrata e um exemplo da decadência da indústria do carvão do interior da América, foi a cidade onde se instalou o avô de Hillary Clinton – e onde a candidata à Casa Branca passou as férias do Verão e do Natal da sua infância. Ainda há quem se lembre bem dela.

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Alexandre Martins

O calor pega-se ao corpo e o pouco vento que dobra cada esquina leva tudo menos a sensação de que precisamos de um banho de água fria ali mesmo, no meio da Avenida Diamond. Podias ter escolhido um dia melhor para vires a Scranton, pensamos nós e diz James Manley, com pressa para entrar no carro e pouca vontade de falar sobre política. Mas os cartazes de apoio a Bernie Sanders no pequeno jardim que serve de entrada à sua casa (e os efeitos do calor sobre o raciocínio) estão mesmo a pedir uma pergunta parva: "Hillary Clinton vinha aqui passar férias com os avós, não vai votar nela?"

Os cartazes de apoio a Bernie Sanders foram lá postos pelos filhos, dois gémeos de 27 anos que são "fortes apoiantes" do candidato do Partido Democrata. É claro que Manley sabe muito bem que "a Hillary viveu mesmo ali em frente, naquela porta", que fica do outro lado desta estreita rua com estatuto de avenida, não mais do que 15 passos bem largos ou no máximo 20, que o calor faz muitas coisas mas não empurra ninguém.

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A entrada da casa de James Manley com o cartaz de apoio a Sanders Alexandre Martins

Quem conhece bem a história é a mulher de James, Helen Manley, "antes Helen Smith", mais disponível para falar com uma pessoa que pouco mais tinha para mostrar do que um sotaque estranho e não sei quê "Pórtchugâl". "Os avós dela moravam na casa da esquerda. Lembro-me muito bem dele e do tio dela, eu costumava fazer-lhes recados, ir a lojas e assim. Mas não me lembro de a ter visto cá, porque sou mais nova, e nessa época ela já não vinha cá muitas vezes."

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A fábrica Scranton Lace Company, onde o avô paterno de Hillary trabalhou Richard Waldman
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Richard Waldman
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Richard Waldman

Pressionando mais um pouco, que um tipo não faz seis horas de viagem de Cleveland, no Ohio, até à pequena e deprimente cidade de Scranton, na Pensilvânia, só porque gosta, James Manley acaba por ajudar. Mais ou menos: "As pessoas que vivem lá agora, se estiverem em casa, não vão abrir a porta. São frias, não falam connosco, não olham para nós, não cortam a relva. Acho que não vais ter sorte." Antes de arrancar, resume a forma como vê as eleições deste ano nos Estados Unidos repetindo uma frase que os amigos já estão cansados de ouvir: "Há 325 milhões de pessoas neste país e só temos aqueles dois a concorrer? Toda a gente acha que isto está tudo feito e que é ridículo, por isso este ano se calhar vou votar no candidato do Partido Libertário."

As casas na Avenida Diamond são quase todas iguais. Depois de se abrir a vedação é só subir dois ou três degraus e damos de caras com duas portas, uma à esquerda e outra à direita – como se houvesse uma terceira hipótese. Umas estão mais aprumadas, com a relva cortada e cadeiras fashion, bandeira dos Estados Unidos quase a dormir porque o vento é pouco, e portas que se abrem para depois se bater à outra porta que, essa sim, deixa entrar moradores e visitas. Outras casas, a esmagadora maioria, ou estão a precisar de obras ou já nem as obras podem fazer as vezes daquelas mantas que aparecem à última hora no sofá lá de casa, só para esconderem a mancha que apareceu mesmo agora que os amigos estão a chegar.

Mas esta avenida, onde Hillary Clinton passou os verões e os natais desde que nasceu até que foi para a universidade, entre o fim da década de 40 e meados dos anos 60, revela-se cada vez mais um microcosmos da sociedade norte-americana, se é que se pode elaborar sobre isto numa página de jornal.

Mesmo em frente aos Manley, lembra-se James, mora uma portuguesa. "Uma portuguesa?" Olha que engraçado, uma portuguesa que mora em frente ao James e ao lado da casa onde viveram os avós e o homem que viria a ser pai de Hillary Clinton, no n.º 1042 da Avenida Diamond, em Scranton – a cidade onde se instalaram os escritórios da série The Office, versão norte-americana, claro. (Na verdade, foi tudo filmado em estúdio na Califórnia, mas a delegação da empresa de distribuição de papel fictícia que está no centro da série faz de conta que é de Scranton e são muitas as referências à cidade, a começar pelo genérico.)

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A Avenida Diamond, onde Hillary passou férias até ao fim da adolescência Alexandre Martins

Batemos à porta do 1044 e somos cumprimentados em inglês por uma mulher que também está com pressa, neste caso para o trabalho. Depois das apresentações e do motivo da inesperada visita, "Pórtchugâl" passa a "Portugal" e a resposta surge mesmo em português, mas com sotaque a condizer com o calor.

Eliana Linhares nasceu em Minas Gerais, no Brasil, e chegou a Scranton há 16 anos. A ideia da visita é falar com as pessoas que moram na casa onde Hillary Clinton passou férias e com a vizinha de longa data, Hazel Price. Mas já tínhamos batido a ambas as portas leve, levemente, e ninguém chamou por ninguém. Nem mesmo quando batemos com mais força.

"Eles acabaram de comprar essa casa, há uns quatro meses. Mas na casa lá da esquina acho que mora um parente dela, um primo ou tio." Não, Eliana, quem mora na casa lá da esquina é um detective com o apropriado nome Thomas Tell, não tem qualquer relação com Hillary Clinton e só atende com marcação.

Mas do Brasil vai um voto para a candidata do Partido Democrata em Novembro, "com certeza", não porque mora nesta rua, mas porque sempre gostou dela: "Votei nela em 2008 e também votei nela nas primárias deste ano. Tomara que ela ganhe, Trump de jeito nenhum. Acho que ele é uma ameaça, tenho medo dele. Com tanta confusão que está acontecendo, ele é muito controverso."

Ray Morris está no outro lado da estrada, a olhar fixamente para o estranho que lhe invadiu a rua onde mora há 61 anos. Sentado à porta de casa, na sombra, sem camisa e com a já famosa pouca disposição para falar que caracteriza a Avenida Diamond, diz-nos que tem 85 anos e nós dizemos-lhe que parece muito mais novo. Não é só para quebrar o gelo, é verdade, mas quebrou o gelo: "Obrigado!"

Enquanto manda calar o beagle que ladra sem parar num sítio qualquer para além da porta (a única companhia que tem desde que a mulher morreu, há sete anos), diz que nunca ligou muito a Hillary Clinton e só se lembra de a ver por lá quando o pai morreu, em 1993, e quando voltou à cidade "para baptizar alguém da família dela naquela igreja ali em cima". É evidente que pôr Ray Morris e Hillary Clinton na mesma frase não é coisa que se faça – o seu candidato é "o Sr. Trump". Talvez por isso, por admirar um candidato que não esconde o que pensa, Morris salta a parte em que ia começar a explicar o voto no candidato do Partido Republicano e vai directo ao assunto para explicar a irritação com Clinton: "Porque é uma mulher. Acho que uma mulher não deve ser Presidente." E Barack Obama, que é negro? "Não tenho problemas com os negros. No meu tempo chamávamos-lhes 'colored'."

Morris fez o ensino secundário há 67 anos e na escola dele só havia um rapaz negro, ao todo eram uns 365. "Mesmo assim, no fim do ano, quando votámos para atribuir prémios, ele foi considerado o rapaz mais popular. Raparigas eram umas três ou quatro, e uma delas veio a ser a primeira professora negra em Scranton. Deu aulas na mesma escola durante 35 anos, morreu há uns dois anos", conta Ray Morris, por entre sublinhados de que as coisas mudaram muito, e percebendo-se a cada palavra que isso não é nada bom.

Dois dos novos vizinhos de Ray Morris são Steven Michael Petroziello Bernardi e Randy Joseph Bernardi, os nomes bem visíveis numa placa mesmo ao lado da porta. No jardim dos Bernardi não há só uma bandeira: para além da quase obrigatória, a dos Estados Unidos, há também uma com as cores do arco-íris. Dois sofás cá fora, fachada renovada e vontade de falar.

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A casa de Steven e Randy Bernardi Alexandre Martins

Steven e Randy conheceram-se em 2010 e casaram-se no ano passado, e só não foi pela igreja porque já tinham outros planos: "Podia ter-me casado na minha igreja, a igreja de St. Luke's, eles celebram casamentos de pessoas do mesmo sexo, mas decidimos casar-nos noutro sítio." Quem os casou foi o mayor de Scranton, Bill Courtwright, um democrata neste bastião de democratas conservadores, cada vez mais cortejados pelos candidatos dos dois partidos – Hillary Clinton tinha visita marcada para 8 de Julho, mas o homicídio de cinco polícias em Dalas levou a um adiamento na agenda, e diz-se por aqui que Donald Trump virá ainda esta semana, embora não haja confirmação oficial.

Steven trata dos jardins num cemitério e Randy é chef. Steven vai votar em Hillary Clinton porque é democrata, e porque em 2008 também votou nela, e Randy não vota porque "este país precisa de candidatos novos". Steven fica para falar mais um pouco, e Randy vira as costas e volta para casa.

Já quase a perder a esperança de encontrar Hazel Price, a mulher que viveu paredes meias com os avós e o pai de Hillary Clinton durante décadas, a magia da Internet leva-nos até à sua nova morada, numa zona de apartamentos para reformados, uma espécie de Boca Raton de Scranton.

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O pai de Hillary numa fotografia mostrada por Hazel Price Alexandre Martins

Acabou de fazer 91 anos, mas deve ser uma característica desta antiga meca das fábricas de carvão e outras indústrias: Hazel Price parece ser ainda mais jovem do que Ray Morris.

Não hesita em abrir a porta de casa, um dos quatro pequeníssimos apartamentos dos inúmeros blocos que há em Park Gardens, uma zona que é na prática um gigantesco lar para a 3.ª idade mas com privacidade. Mora sozinha, e talvez por isso a foto de família encontrou o lugar mais nobre para se alojar: a parede que se vê mal a porta se abre. Está a ver televisão, mas os olhos tristes e a pressa com que vai buscar o álbum de recortes e fotografias da sua vida com a família Rodham, e depois com Bill e Hillary Clinton, é um atalho mal disfarçado para interromper a solidão.

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Hazel Price não quis mostrar a cara mas deixou-se fotografar com a sua almofada Alexandre Martins

"Eu conheço a Hillary desde que ela nasceu, fui ao baptizado dela. Nós, os avós e os pais dela íamos todos à mesma igreja. Os pais mudaram-se para Chicago, mas quando a Hillary nasceu eles vieram cá baptizá-la na mesma igreja, a Igreja Metodista de Court Street", que fica a poucas centenas de metros da Avenida Diamond.

Hazel ficou grávida da primeira filha na mesma altura em que Dorothy ficou grávida de Hillary. A relação era muito próxima, diz, recordando o tempo em que iam as duas comprar roupas para os seus bebés. Ao todo, foram 69 anos passados no n.º 1040, mesmo ao lado do 1042 da família Rodham, onde Hillary passou as férias de verão e os natais nos primeiros 18 anos de vida.

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À direita vivia Hazel Price, ao lado da casa onde Hillary passava férias Alexandre Martins

Mas, apesar da amizade que ainda mantém com Hillary Clinton, Hazel Price acha que a corrida para a Casa Branca vai ser muito renhida, e que os republicanos vão acabar por se unir à volta de Donald Trump. "Ambos têm de lutar muito, mas o que me incomoda mais é que não se ganham eleições a insultar os adversários. Tanto Donald Trump como a Hillary têm de perceber isso." De uma coisa Hazel não tem dúvidas: "Se o Bernie Sanders tivesse sido o nomeado, Donald Trump não teria nenhuma hipótese."

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Price mostra a foto de um álbum que guarda com várias fotos da sua história com Hillary Alexandre Martins
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