Mondar o cante com foices novas

Três músicos alentejanos de áreas distintas, da clássica ao jazz, propõem uma releitura do cante que o aproxima da música de câmara sem lhe trair a essência. Monda é o seu nome. E é o seu disco de estreia.

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Começou com um mocho. Não, na verdade, começou antes, eles já se conheciam por serem alentejanos e por trabalharem juntos noutros projectos musicais. Mas numa certa tarde, um mocho acordou-os para outra coisa. “Um dia, estávamos num ensaio e eu mostrei ao Pedro e ao Herlander um arranjo muito pouco formal de um tema tradicional alentejano, O mocho.” Quem assim fala é Jorge Roque. Com ele, estavam Pedro Zagalo e Herlander Medinas. Ouviram e acharam que aquilo podia ser o início, não de uma bela amizade (que já existia) mas de um novo projecto musical. Pedro recorda: “Esse arranjo tinha ritmicamente uma célula diferente, feita à guitarra, que não estava no cante alentejano nem nos arranjos tradicionais. E nós achámos muito interessante. Eu estava sentado ao piano e peguei nessa célula rítmica, que dá origem à cama que faz o tema.” Jorge explica: “É sempre a mesma nota, praticamente, é um baixo contínuo”.

Ali, sem ainda terem dado nome ao grupo, nasciam os Monda. Jorge Roque guitarra e voz, Herlander Medinas, contrabaixo e voz (ambos nascidos em 1977) e Pedro Zagalo, que toca piano e outros teclados mas não canta (nascido em 1983). O mocho foi então gravado e dele foi feito um vídeo (está no Youtube), mas o som definitivo viria mais tarde. Pelo meio houve um processo de procura de temas tradicionais. “Nos primeiros tempos, houve uma série de modas que fomos buscar ao cancioneiro popular alentejano, muitas delas em Portel, que é a nossa zona de estar, ainda hoje.” Às vezes surgiam por acaso. “A canção Portel estás satisfeito”, diz Jorge, “ouvi-a numa festa dos Bombeiros Voluntários de Portel. A dada altura da patuscada, o Zé Cortes [um dos elementos dos Cantadores de Portel, coral alentejano que participa no disco] cantou-a. Eu quis logo que ma ensinasse, até porque mesmo em Portel poucos a conheciam. Era cantada pelo avô dele, na Casa do Povo, e estas coisas, se não forem registadas, desaparecem.”

Cante com música

Na cabeça de Jorge, Pedro e Herlander estava uma coisa diferente de criar apenas novos arranjos para modas antigas. “Os último estudos, feitos para a candidatura do cante a património mundial, mostram que nos primórdios do cante, nos bailes e nas festas, havia acompanhamento, quer seja ao acordeão ou à viola campaniça. Claro que, com o correr dos tempos, como as pessoas não podiam levar instrumentos para ceifar, parecia mal, tanto as mulheres como os homens começaram a usar só a voz.” Esta era uma pista: recuperar o lado instrumental do cante. “O cante não deixa de ser música, é uma parte da música tradicional portuguesa, e nesse aspecto não tem de ser estanque nem estático, faz todo o sentido levar este tipo de linguagem para outras paragens sem lhe retirar aquilo que é óbvio, que é a simplicidade das melodias e sobretudo dos textos.”

Outra pista era a transversalidade com outras áreas, aquilo que cada um deles podia trazer ao cante a partir das suas diferentes experiências musicais. “Somos de áreas um bocadinho distintas, desde a clássica ao jazz, e esses factores também culminaram nesta mistura explosiva. Nos primeiros tempos, pensámos até em não haver nenhum tema que tivesse coro, porque o coral é exactamente o fio condutor do tradicional, a imagem estereotipada que as pessoas têm do Alentejo. Mas a dada altura faz falta, é natural.”

O disco reuniu doze temas, atraindo outros músicos e cantores: Rui Veloso (voz e guitarra), Katia Guerreiro (voz), Ruben Alves (piano), João Tiago Oliveira (guitarra clássica), Mário Caeiro (acordeão), João Ferreira (percussões) e Pedro Vidal (lap steel guitar e banjo) e o grupo coral Cantadores de Portel. Gravado no estúdio Vale de Lobos, de Rui Veloso, este acabou por participar de forma natural. “Foi um feliz acaso para nós. Ele ouviu, nós nem estávamos presentes, e perguntou ao nosso produtor se podia gravar connosco. Deu-nos um gozo imenso.” Já Katia Guerreiro surgiu por iniciativa do grupo, diz Jorge. “Fez sentido, uma vez que queríamos passar essas fronteiras da voz tradicional. O texto onde ela canta é um diálogo entre uma pessoa que está no Ultramar e outra que ficou cá. Aconteceu, por exemplo, com os meus pais e com tantos outros.”

Já os Cantadores de Portel, o tal grupo coral “que fazia falta”, participou no disco da mesma forma que participa nas suas sessões de cante. “Um é meu irmão, esse tinha que vir; os outros são meus amigos”, diz Jorge. “Quando acabou a parte da gravação”, diz Pedro, “puseram a toalha, tiraram uma garrafa de vinho, um queijinho, um chouriço e fizeram ali uma patuscada”. Jorge completa o quadro: “Essa forma genuína de as coisas acontecerem é que salta à vista, e é isso que deve ser levado para os palcos, apesar de nós metermos depois as harmonias, as versões, as musicalidades que quisermos. O essencial está mesmo nas pessoas.” Esse exemplo levou-os a darem nome a um vinho alentejano homónimo, porque o vinho é inseparável do cante. “Por isso é que fizemos essa mostra com o vinho Monda. Eu lembro-me de ser miúdo e perto da casa dos meus pais haver a taberna da Ti Raminhas. Eu estava ali à porta, muitas vezes à espera para jantar, e ouvia os homens lá dentro a cantar, muitas vezes até à meia-noite, uma da manhã, sobretudo nas noites de Verão. Parecendo que não, essas coisas ficam.”

Uma voz: Calabaça

E ficam as vozes. No final do disco, há um bónus muito especial, Solidão, cantado integralmente a capella por Bernardo Charrua (Calabaça), um dos elementos dos Cantadores de Portel. “Temos uma voz aí que é das melhores vozes do cante, o Bernardo Charrua. Eu conheço-o, desde miúdo, como Calabaça, e desde miúdo (ele vai a caminho dos 70 anos) que o ouço cantar assim. Isto só fazia sentido se ele viesse gravar, porque é uma voz que tinha de ser registada, principalmente neste formato. Foi um homem que trabalhou muito, no campo e não só. Ele era cantoneiro de estradas.”

Ouvido na íntegra, Monda deixa a ideia de uma paisagem alentejana com cores novas mas sem perder os seus traços essenciais, aliando ao cante os sons instrumentais que lhe são devidos. Pedro: “A ideia era não criar muitos malabarismos harmónicos. Um dos nossos objectivos foi criar uma matriz para que não fosse apenas cantar o Alentejo. Era cantar e tocar o Alentejo. Há faixas no disco, como Diz a laranja ao limão, com uma parte instrumental extensa, onde mesmo sem vozes nós conseguimos sentir o Alentejo.” “É como se sentíssemos as searas a ondular ao vento”, acrescenta Jorge Roque.

Antes da apresentação do disco em Lisboa, no Tivoli BBVA, em 15 de Novembro, eles rodarão por auditórios e espaços ao ar livre durante o Verão, no Alentejo e não só. Mas Novembro é a data a fixar: “Vai ser um concerto especial. Com umas surpresas.”

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