Os painéis intermitentes de Querubim Lapa no Hospital de Coimbra

Trabalho de cerâmica do mestre no átrio do Hospital da Universidade de Coimbra foi tapado para servir como espaço expositivo. Agora prometem-se obras de restauro.

Foto
Adriano Miranda

Fernando Proença é um arquitecto aposentado, a viver em Coimbra, que se cruzou com Querubim Lapa, a quem se refere como “este jovem”, muito cedo. Primeiro na Escola de Artes Decorativas António Arroio, na década de 40, e, mais tarde, na Faculdade de Belas Artes no Porto, entre 1951 e 1953, tendo mantido relações ao longo da vida. Foi ele que deu conta do "desaparecimento" de uma das obras do mestre nesta cidade, escondida durante anos debaixo de um tapume que divulgava exposições várias.

A obra do mestre falecido no passado 2 de Maio é conhecida. Se o seu legado é vasto e não se fica pela cerâmica – dedicou-se à pintura, desenho, gravura, tapeçaria e escultura - foi através desta expressão que se notabilizou. A lista dos seus trabalhos tem nela incluídas intervenções como a pastelaria Mexicana, a reitoria da Universidade de Lisboa, a Casa da Sorte, no Chiado, ou o Banco de Portugal, todas situadas na capital. Em Coimbra há um painel de azulejos de 14 metros de comprimento por três de altura na entrada principal do Hospital da Universidade de Coimbra (HUC) da autoria do ceramista.

Em Novembro, numa deslocação ao hospital, Fernando Proença ficou “atónito”. O painel encontrava-se coberto por um tapume azul para que ali fossem afixadas exposições organizadas pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).

O painel de azulejos na entrada principal do Hospital da Universidade de Coimbra que Querubim Lapa assinou em 1983 esteve tapado por tempo indeterminado, explicou o gabinete de comunicação e relações públicas do hospital em resposta ao pedido de esclarecimento do PÚBLICO. A decisão foi justificada pelo gabinete com “opções estratégicas de divulgação das exposições, uma vez que o espaço do painel apresentava as características ideais para fazer a apresentação e cronologia dos serviços organizadores da exposição, pelas dimensões e visibilidade do mesmo”. De acordo com a resposta, a iniciativa partiu “dos serviços organizadores e dos respectivos curadores das exposições”.

Pela percepção dos profissionais de saúde e estudantes de medicina que se movimentam pelo edifício com quem o PÚBLICO falou, não é possível apontar para a duração do período precisa em que a obra esteve ocultada pelos placards. Uns dizem tê-lo visto pela primeira vez há uns meses, outros referem que é tapado pelas exposições de tempos a tempos. Na resposta que deu por email, o gabinete do hospital diz não saber precisar o intervalo de tempo. Não especifica também quando foi lá colocado o placard e refere apenas que foi retirado no final da última exposição, sobre medicina interna. Esta última, segundo material de divulgação do CHUC, foi colocada a 25 de Janeiro e tinha o fim de exposição marcado para 25 de Março. Antes, por aquele espaço passaram outros temas, como uma cronologia a assinalar os 100 anos da especialidade de Ortopedia.

No início da década de 80, António Rocha Lobo foi o arquitecto responsável pelo projecto de execução do edifício do hospital e foi ele quem convidou o mestre para conceber o painel de cerâmica. Através de um amigo em comum com o arquitecto Fernando Proença, Rocha Lobo soube, ainda em 2015, que o painel estava ocultado e passou depois pelo átrio do edifício quando se deslocou a Coimbra. “Aquilo mexeu comigo”, conta ao mencionar que ficou com a percepção de que os painéis permanecessem ocultados “já há bastante tempo”.

“Incrédulo”, escreveu uma carta dirigida ao Conselho de Administração do CHUC. Enviou-a a 26 de Janeiro deste ano e recebeu a resposta no dia 2 do mês seguinte. “O painel tem estado ultimamente inacessível devido a opções logísticas relacionadas com exposições realizadas e/ou a realizar no átrio do Hospital da Universidade de Coimbra”. A resposta assinada pelo presidente do conselho de administração do CHUC, José Martins Nunes, dava garantias de que a ocultação dos painéis não seria “um destino definitivo, mas uma questão meramente temporária”.

No entanto, a preocupação com a ocultação da obra de Querubim Lapa já era do conhecimento dos responsáveis do CHUC. Em Novembro, Fernando Proença enviou aos dois jornais diários da cidade uma carta aberta à administração em que dava conta da situação. Um foi publicado a 24 e outro a 28 desse mês. O texto lamentava o “desprezo”, a “insensibilidade e a “ignorância artística” de quem decidiu fazer daquela superfície um espaço expositivo.

Nas respostas enviadas ao PÚBLICO, o hospital confirma que a administração teve conhecimento das publicações, mas volta a justificar a manutenção dos placards em frente aos painéis de cerâmica do mestre com “opções estratégicas de divulgação das exposições”.

A 15 de Dezembro de 2015, Fernando Proença esteve no 90º aniversário de Querubim Lapa, com quem nunca perdeu o contacto desde os tempos da António Arroio. “Falei com o Querubim, ficou horrorizado”, garante o arquitecto. Mais tarde, a 19 de Janeiro, escreveu uma carta à directora-geral do Património Cultural a reportar a situação, mas lamenta que nunca tenha resposta. Na missiva o arquitecto referia que o mesmo átrio onde está o painel de cerâmica tinha muitos espaços laterais que poderiam servir como área expositiva do material de divulgação, tal como acontece hoje.

O próprio pintor e ceramista era crítico sobre a forma como eram tratadas várias das suas obras em Lisboa. Em 2014, Querubim Lapa lamentava o estado de degradação de muitos trabalhos, referindo-se, entre eles, ao painel O Terraço, instalado na Avenida da Índia, em parte escondido por placards de publicidade autorizados pelo município.

Agora visíveis aos olhos de quem lá passa, os painéis de Coimbra apresentam fissuras em ambos os extremos. O gabinete do CHUC explica que estas já “são antigas e não se devem ao facto de o mesmo ter estado tapado durante algum tempo”, assegurando que, durante esse período, o painel estava “devidamente protegido para que não sofresse quaisquer danos para além dos existentes”. A sua origem reside na “actuação de tensões do edifício e dos materiais”. A mesma fonte, embora sem adiantar prazos, refere que “está prevista a recuperação do painel”.

Sugerir correcção
Comentar