A trompete infiltra-se na música das The Unthanks

Cada vez mais afectadas por uma forma jazzística de abordar a folk, as The Unthanks deliciam com um reportório colhido na tradição mas que dela se sabe sempre desprender. Este domingo, estarão no Festival Músicas do Mundo.

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As Unthanks (as irmãs Rachel e Becky) vêm, desde 2009, abandonando uma postura mais alinhada com a tradição folk inglesa e complexificando a sua música com uma liberdade jazzística FOTO: DR

Desde a sua infância numa pequena cidade mineira de Yorkshire que Adrian McNally acredita não haver instrumento mais emotivo e pesaroso do que a trompete. Por estranho que possa soar, o rastilho inicial dessa convicção remonta à sua obsessão em criança com o tema título do álbum Islands, dos King Crimson, longe de figurar em qualquer lista dos maiores feitos musicais com o instrumento. Mas foi o pequeno solo desse tema do grupo de rock progressivo a criar em McNally uma relação epidérmica com a trompete, muitos anos antes de se cruzar com Sketches of Spain, álbum de colaboração entre Miles Davis e Gil Evans, que se mantém até hoje no topo das suas preferências musicais – e que se baseia numa releitura do Concerto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo.

Era só uma questão de tempo, portanto, até que a trompete se infiltrasse e conquistasse espaço na música das The Unthanks. Se anda por lá, a flutuar desde 2009, é no último Mount the Air que reclama um lugar mais nobre, no tema homónimo, baseado numa canção tradicional da região de Dorset. “Não faço ideia por que razão foi necessária uma melodia tradicional inglesa para que o meu amor por Miles Davis finalmente se revelasse”, confessa McNally, músico, produtor e manager desde que o grupo se transformou de Rachel Unthank and the Winterset em The Unthanks – corrigindo a designação para equilibrar os papéis das irmãs Rachel e Becky.

Embora seja a trompete, durante os 10 minutos do distendido tema inicial de Mount the Air, a evocar Miles Davis, é na comparação com as irmãs que McNally encontra os maiores pontos de contacto. “Miles tocava frequentemente com pouco vibrato, mais ou menos da mesma maneira que a Rachel e a Becky cantam. Talvez porque o vibrato é algo associado a uma interpretação grandiosa, excessiva e maneirista; acho que estamos mais inclinados a ouvir honestidade e verdade quando o vibrato fica de fora. E tal como acontece com a Rachel e a Becky, o Miles joga com a afinação, usando os limites do tom de uma nota para transmitir emoção e sugerir vulnerabilidade.” Embora não haja por parte das irmãs uma consciência destes preciosismos técnicos, o efeito é semelhante, defende.

A referência de Miles Davis é sobretudo importante pelo percurso que as Unthanks (assuma-se o feminino, uma vez que é em torno das irmãs que a banda existe) vêm fazendo desde 2009, pouco a pouco abandonando uma postura mais alinhada com a tradição folk inglesa e complexificando a sua música com uma liberdade jazzística, dotadora de uma qualidade mais difusa e brumosa. Essa é, no entanto, uma comum atitude exploratória comandada aqui pela intuição. Adrian, salientando as semelhanças que encontra no jazz e na folk enquanto músicas de reinterpretação, confessa-se “nervoso” com as comparações pela sua total ausência de educação musical formal. “Ainda por cima, lembro-me de mais maus do que bons exemplos de folk-jazz na história da música – só ver ou ouvir as duas palavras juntas costuma encher-me de pavor. Mas espero que tenhamos conseguido mostrar que é possível ser feito.”

McNally fala ainda de uma relação semelhante com música quase-orquestral e de como o minimalismo de Steve Reich, apesar de ainda mais abstruso se pensado como influência para um grupo de raiz folk, exerce também algum ascendente na sua forma de trabalhar os arranjos do grupo. Não é por acaso, aliás, que é por ele que passa o início de entrevista com as Unthanks. A sua entrada para o grupo em 2009, com a gravação de Here’s the Tender Coming, ajudou a redesenhar um novo universo musical para a música disposta em torno das vozes de Rachel e Becky, permitindo-lhes assumir a folk como um território de herança mas não de simples reprodução da tradição. E frisam que por mais radical que possa soar qualquer reinterpretação, o ponto de partida é sempre o mesmo: uma relação apaixonada pelo material de origem.

“Independentemente dos sítios aonde as nossas aventuras musicais nos levam”, garante Becky Unthank, “penso que eu e a Rachel nos sentiremos sempre cantoras folk.” Com os pais fortemente envolvidos no folk revival dos anos 1960, as duas frequentaram festivais desde pequenas, participaram em grupos de clog dance e ouviram uma miríade de cantores e músicos cuja influência duradoura ainda hoje se faz sentir naquilo que cantam e no reportório que pesquisam para cada novo disco das Unthanks. “Somos inspiradas por todos os tipos de música, mas foram as canções folk a levar-nos a cantar”, continua Becky. “Histórias de amor, de vida e de perda, de trabalho e de indústria, do mar e do sobrenatural. Há tanto material tradicional extraordinário ao qual nos podemos atirar. Adoramos cantar temas folk, mas não somos preciosistas; somos curiosas acerca de outros géneros musicais.” Assim o comprovaremos este domingo, em Porto Covo, no Festival Músicas do Mundo.

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Diversões

Essa curiosidade tornou-se especialmente evidente na série de discos fora da sequência dos álbuns de originais composta por Here’s the Tender Coming (2009), Last (2011) e Mount the Air (2015). Entre os dois últimos, as Unthanks pariram três volumes de Diversions: o primeiro dedicado a versões de Robert Wyatt e Anthony & the Johnsons – juntos por ouvirem nos dois um semelhante diálogo com a condição humana, em que “nunca há uma nota desperdiçada ou tocada para impressionar” –, o segundo gravado ao vivo com uma brass band e o último dedicado à banda sonora de um documentário sobre a indústria da construção naval britânica. No seu conjunto, funcionam como uma pesquisa laboratorial e de teste à elasticidade da sua música, preparando o caminho para a consumação total da expansão sonora alcançada em Mount the Air.

Diversions Vol. 2, com uma brass band de 30 elementos, foi crucial para o entendimento do que poderiam ser as Unthanks explorando uma paleta sonora muito além da formação essencial. Ajudou a que as canções pudessem ser pensadas num universo de orquestração, sem com isso mascarar a sua absoluta fragilidade. E, para Adrian, foi a possibilidade de, unindo a folk a uma brass band, juntar “música escrita sobre, interpretada e ouvida por comunidades working class semelhantes do Norte de Inglaterra”. Vol. 3, ao acompanhar o declínio da indústria naval, aproximou-os de questões sociais e políticas a que a sua música não deve procurar alhear-se – ou não fosse folk de origem e estando a folk pejada de relatos sobre condições laborais e injustiça social.

Robert Wyatt, experimentador soberbo dos caminhos de folk, pop, rock e jazz, numa súmula musical que tem a sua marca e não parece sequer passível de ser transmitida, acaba por ser um farol óbvio para o caminho da Unthanks. E já o vinha sendo oficialmente desde que, em 2007, ainda enquanto Rachel Unthank and the Winterset, haviam gravado Sea song no álbum The Bairns. Wyatt deu o seu aval. E promete que quando um dia lhe perguntarem aquela coisa do disco e da ilha deserta havia de nomear Diversions Vol.1.

As histórias no centro

Existe na música das Unthanks um encontro curioso, e pouco usual, entre uma atracção pelo risco e por formas menos convencionais, e uma natural inclinação para o património melódico inglês. O que, paradoxalmente, lhes tem valido tanto fãs quanto detractores que acham a sua música ou demasiado aventureira ou demasiado comercial. “É uma contradição interessante”, concorda Adrian McNally. “Há quem oiça falar numa abordagem moderna à música folk, veja duas raparigas bonitas na capa e presuma sem investigar grande coisa que se trata de uma diluição comercial da música tradicional. Mas tenho a certeza de que artistas com notas de dólar à frente dos olhos não costumam cantar sobre os ossos e o sangue de crianças mortas nem começar álbuns com músicas de 10 minutos ou cozinhar para os seus fãs em fins-de-semana junto ao mar.”

Admitindo sentir como um falhanço cada pessoa que não compreende esta música, McNally entende que as Unthanks não são tão vanguardistas nem tão tradicionalistas quanto a música que ouvem. E nisso, compara, serão semelhantes a alguém como Sufjan Stevens, cuja música toma uma forma mais acessível do que cada uma das suas assumidas influências.

Até porque o desígnio da banda não passa por desbravar necessariamente novos territórios da música folk, mas antes descobrir perspectivas próprias que possam potenciar a beleza de cada trecho que ressuscitam. “Começamos por coligir canções que queremos explorar”, explica Rachel em relação à construção de cada álbum. “Podem ser canções que ouvimos na nossa infância, descobertas em livros ou em discos antigos, ou criações mais recentes que nos inspiram. A Becky encontrou algumas canções do último álbum numa pesquisa na biblioteca da English Folk Dance and Song Society, Cecil Sharp House, enquanto eu e o Adrian nos inspirámos no Foundlind Museum em Londres para os temas Foundling e Last lullaby.”

Last lullaby adapta a canção de embalar tradicional Golden slumbers, cujo poema foi transformado por Thomas Dekker para a peça de teatro Patient Grissel em 1603. Depois de Becky ter encontrado o texto num songbook folk de uma venda de beneficência, as duas começaram a cantar a letra em harmonia e com a subsequente visita de Adrian ao Foundling Museum juntaram toda uma série de informação sobre um hospital para crianças que forneceu o restante contexto. Rachel, recém-mãe, comoveu-se com os testemunhos de pais que deixavam os filhos na esperança de poder regressar e levá-los novamente consigo e Last lullaby nasceu dessa confluência de informações.

É um bom exemplo de como, na melhor tradição da música folk, as histórias estão sempre no centro do reportório das Unthanks. Embora não excluam canções que não obedeçam a um esquema narrativo, Rachel e Becky reagem sobretudo a essa força de partilhar um relato com o público através de uma canção. “As palavras são importantes, não cantamos para ouvir o som das nossas vozes”, argumenta Becky. “Queremos passar uma história ou um sentimento.” A música, de certa forma, é apenas um engodo, uma maneira de embrulhar as palavras e torná-las mais facilmente transmissíveis. Só que, naturalmente, há embrulhos mais belos do que outros. E não é muito fácil encontrar quem os embeleze mais do que estas duas irmãs.

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