Terrorismo e “descristianização”

Um dos riscos que pode correr a Europa é o de fomentar um recrudescimento do “fundamentalismo cristão”.

1. Diante da indignação que nos suscita a onda terrorista e, em especial, este último episódio de Nice, merece a pena concentrarmo-nos na decifração do sentido dos atentados que têm sido cometidos em França. Os atentados de Madrid (2004) visaram um comboio e a estação de Atocha, os de Londres (2005) atingiram o metro e os de Bruxelas (2016) incidiram sobre um aeroporto e uma estação de metro. Em todos eles, há um traço comum, um padrão: ocorrem em meios de transporte públicos, de largo uso, e nas respectivas plataformas de acesso. O seu desígnio imediato, mais do que qualquer outro, é criar o maior número de vítimas. Naturalmente, em nome dos valores – ou melhor, dos “anti-valores” – da Al Qaeda ou do Daesh. Mas a escolha de plataformas de acesso a meios de transporte colectivo evidencia uma prioridade: atingir um enorme número de pessoas e assim desencadear o efeito terrorista do medo e da vontade de vingança. Não há, como havia nas Torres Gémeas, em 2001, um desígnio de matar a máxima quantidade de pessoas e de, ao mesmo tempo, destruir um dos símbolos da sociedade capitalista ocidental, do poderio metropolitano nova-iorquino. O ataque às Torres Gémeas tem, nos séculos XX e XXI, secularizados e cosmopolitas, o capital simbólico da implosão dos dois Budas de Bamiyan pelos talibãs (também perpetrada em 2001). Com um requinte adicional: não foi apenas atingido o engenho humano, foi decepada a própria humanidade.

2. Ora, se olharmos para a tríade dos três grandes atentados ocorridos em França – Charlie Hebdo (Paris, 2015), Bataclan (Paris, 2015) e Promenade des Anglais (Nice, 2016), também neles encontramos um padrão, mas desta feita com um escopo simbólico, com uma busca de sentido. Começando pelo hediondo atropelamento de Nice, visa-se aí os valores da República Francesa. A escolha do 14 de Julho e do seu significado – a trilogia liberdade, igualdade, fraternidade e a implantação da laicidade – não podia ser mais reveladora. E atinge-se também uma das capitais do turismo, do cosmopolitismo e do hedonismo a que se “renderam” as sociedades ocidentais. Este mesmo propósito – o de atacar um estilo de vida, o direito ao lazer e ao prazer, a liberdade de criação – está presente no massacre do Bataclan. A mortandade infligida num concerto ou os ataques cegos a restaurantes e esplanadas contêm essa mensagem de condenação de um estilo de vida: arte, prazer, descontração, cultura, liberdade de movimento. O terror no Charlie Hebdo, por sua vez, persegue o mesmo fio condutor axiológico: agora tombando sobre a liberdade de expressão, de crítica, de caricatura, de irrisão. E de crítica e caricatura da religião, que, de resto, está bem incrustada numa longa e velha tradição europeia, onde pontifica esse especial momento francês, em pleno absolutismo de Luís XIV, que é o Tartufo de Molière. Neste atentado, porém, o alvo estava identificado e isolado e o desiderato do grande número de vítimas não fazia parte dele. Enquanto que no Bataclan e em Nice se unem os dois objectivos – ataque ao coração simbólico das sociedades ocidentais e uma grande matança de infiéis –, no Charlie Hebdo só o primeiro subsiste. Todavia, o efeito do terror – disseminação do alarme e do medo e geração das raízes de vingança numa estratégia de self-fulfilling prophecy – permanece. A capacidade de atingir um alvo preciso e determinado deixa todos os outros bastiões do simbólico em estado de alerta, em vigília permanente, em possível intimidação.

3. Estes três episódios fatídicos ocorridos em França não são, por isso, manifestações de uma simples cultura de “morte”, destinada a amedrontar e a cercear os passos às comunidades de vida ocidentais. Eles pretendem também passar uma “ideologia” alternativa, prenhe de valores de severidade, de contenção, de austeridade e de recato nos estilos de vida pessoal, familiar, comunitária e pública. Apelam ao desprendimento do prazer e do lazer, ao total aniquilamento do indivíduo e à sua fusão nos corpos e agregados sociais, à concentração no divino e no religioso – execrando o profano, o laico, o dessacralizado. O sentido destes atentados é, por isso, sem surpresa, um sentido essencialmente religioso – mesmo quando os seus autores não tinham vidas nem historiais conformes ao Corão.

4. Um dos riscos que pode correr a Europa – e que de há muito se materializou nos Estados Unidos e no Brasil – é o de fomentar um recrudescimento do “fundamentalismo cristão”. É bem visível nos movimentos evangélicos que alimentam o Tea Party e, bem assim, na retórica de tantos políticos brasileiros. Não faltará quem paulatinamente – as frentes de extrema-direita já o têm ensaiado e os governos polaco, húngaro e eslovaco não andam longe desse ensaio – venha defender que um retorno ao regime de “cristandade” ou à “república cristã” seria uma solução pacificadora para o terrorismo jihadista de suposta matriz religiosa. A luta seria agora entre os religiosos e não religiosos, como se os terroristas preferissem uma tradicional e recta ordem cristã às sociedades cosmopolitas e diversas dos nossos dias supostamente identificadas com a intransigente laicidade francesa.

5. Trata-se obviamente de um argumento frustre e frouxo. As ditas sociedades “descristianizadas” – embora não gostem nada que isto se diga – são, em muitos aspectos, mais profundamente cristãs do que o regime de cristandade que as antecedeu. Foi Jesus quem separou o político do religioso, distinguindo entre César e Deus. Foi ele que fez da água vinho, que fez do vinho um mistério consagrado, que foi a festas, a bodas e jantares, que conviveu com toda a espécie de gente, da prostituta ao iníquo cobrador de impostos. Foi Jesus quem mais veementemente criticou a religião oficial, não respeitando o Sábado e fulminando os fariseus. Foi S.Paulo quem, antecipando a igualdade e a fraternidade, escreveu na Carta aos Gálatas: “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher”.

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