Trump já comanda a locomotiva mas nem todo o Partido Republicano vai no mesmo comboio

O magnata do imobiliário foi confirmado como candidato oficial, mas ainda não tem todo o partido do seu lado.

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REUTERS/Aaron Josefczyk

Alguém que põe o pé na convenção do Partido Republicano com a sensação de que a sociedade está prestes a ruir percebe em menos de um minuto que entrou com uma visão muito optimista. Nos discursos que são proferidos em cima do palco do pavilhão Quicken Loans, em Cleveland, ou nas mensagens em cartazes e t-shirts que se passeiam pelas ruas da cidade, o que se vê é um mundo já transformado num daqueles filmes-catástrofe com prédios a serem engolidos por gigantescas crateras. E só uma pessoa pode salvar toda a humanidade da perdição: Donald J. Trump, o homem que foi oficialmente nomeado candidato à Casa Branca na noite de terça-feira.

A poucos metros da jaula de ferro pintada de negro que é a única porta de entrada para quem está autorizado a entrar no pavilhão, num cruzamento fechado ao trânsito que serve de palco improvisado para pequenas manifestações com mais polícias do que manifestantes, quatro homens avisavam quem passava que era preciso preparar tudo para ir ter com Deus.

Um deles tocava tambor enquanto repetia as frases escritas na pirâmide de cartazes que empunhava: “Procura o Senhor enquanto Ele ainda pode ser encontrado”, “Tudo quanto fizeres passará pelo julgamento de Deus” e “Catolicismo romano = Sinagoga de Satanás”; outro deixava-se enquadrar numa fotografia com uma jovem que se deixava encantar pela sua t-shirt cor de laranja, onde se lia a palavra “Homo” tapada por um sinal de proibição.

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Alexandre Martins

Mais tarde, já no pavilhão onde decorria o segundo dia da convenção do Partido Republicano, o neurocirurgião reformado Ben Carson - que chegou a liderar as sondagens nas primárias no início de Novembro do ano passado mas que acabou por desaparecer da face da terra eleitoral ainda antes dos idos de Março -, também alertou para os perigos de Satanás, que pelos vistos anda escondido no corpo da candidata do Partido Democrata.

“Uma das coisas que descobri sobre Hillary Clinton é que um dos seus heróis, um dos seus mentores, foi Saul Alinsky”, disse Ben Carson, referindo-se ao activista norte-americano e autor do livro Rules for Radicals, sobre quem Clinton escreveu a sua tese de licenciatura, em 1969.

E depois fez uma ligação que não é nova nos círculos das teorias da conspiração: como Alinsky “reconhece Lúcifer” no seu livro (o autor descreve Lucifer como “o primeiro radical” logo na abertura do livro e não volta a falar da figura até à última página), então os cidadãos não devem eleger como Presidente uma pessoa que tem como referência alguém que reconhece Lúcifer”. Feitas as contas, e traduzindo o que Ben Carson quis realmente dizer, Hillary Clinton “reconhece” Lucifer. Tudo isto num discurso em que salientou os anos que passou a estudar o cérebro humano, “esse órgão notável que define a humanidade e que dá a capacidade não apenas para sentir e observar, mas também para raciocinar”.

Mas se alguém sabe bater em Hillary Clinton é Chris Christie, o governador de Nova Jérsia que se empenhou para ser nomeado candidato a vice-presidente mas que acabou por ser ultrapassado pelo governador do Indiana, Mike Pence.

Num discurso em jeito de simulação de julgamento, o antigo procurador de Nova Jérsia apresentou os “factos” contra “as mentiras” da candidata do Partido Democrata, e acabou cada exemplo com uma pergunta aos delegados: “Ela é culpada ou inocente?” Nem uma coisa nem outra, gritou a multidão, que queria ver o assunto despachado o mais depressa possível: “Prendam-na!”

Mas os discursos apocalípticos, centrados em ataques cerrados à candidata do Partido Democrata e ao estado em que ela deixou o mundo durante os quatro anos em que foi secretária de Estado da Administração Obama (começando no Médio Oriente e acabando nos seus servidores privados, cuja utilização foi criticada mas não criminalizada pelo FBI) não foram suficientes para esconder uma realidade que só não salta à vista dos que compraram uma viagem de ida sem volta no comboio Trump - o magnata do imobiliário foi confirmado como candidato oficial, mas ainda não tem todo o partido do seu lado. Nem entre muitos dos principais nomes do Partido Republicano, nem dentro da própria convenção, como se viu pelas várias manifestações de desagrado de alguns delegados, principalmente dos mais fiéis ao senador Ted Cruz.

São estas as contas que Donald Trump tem de fazer se quiser ter hipóteses de ganhar a chave da Sala Oval: anular a ligeira vantagem que o Partido Democrata tem no eleitorado geral, por questões de demografia e porque não andou a prometer deportar imigrantes sem documentos, construir um muro para impedir a entrada de mexicanos e sugerir a proibição da entrada de muçulmanos; cativar a ala verdadeiramente conservadora e religiosa do Partido Republicano que pende para o lado de Ted Cruz; e atrair a ala conservadora que se considera herdeira de Lincoln e Reagan - dos mais velhos Bush ao ambicioso Paul Ryan.

E ainda faltam os que não encaixam como uma luva em nenhum desses grupos, mas que já nem podem ouvir falar em Donald Trump. Um deles, que se recusou a estar presente na convenção do partido, é o próprio governador do estado onde decorre a convenção, John Kasich.

Enquanto as delegações dos 50 estados e mais alguns territórios administrados pelos EUA nomeavam Trump na convenção, Kasich descarregava toda a sua fúria em cima do candidato e da sua visão para a política externa, num evento organizado em Cleveland pelo grupo International Republican Institute: “Vemos um crescente nacionalismo no mundo, um crescente isolacionismo, anti-imigração e anti-acordos comerciais. Se juntarmos isto tudo, o que é que temos? O que é que isso significa para o mundo? O que é que isso significa para a estabilidade? O que é que isso significa para as relações? Estou muito preocupado.”

Mas o momento histórico acontecia lá dentro, no pavilhão Quicken Loans, onde apesar das evidentes divisões, os delegados nomearam Donald Trump candidato à Casa Branca, tal como os mais realistas já esperavam pelo menos desde Abril - Trump pode ter o chamado establishment contra ele, mas a verdade é que conquistou mais votos, mais delegados e mais estados durante as eleições primárias do que a multidão de 16 adversários que teve de passar para aqui chegar, entre eles três senadores, dois governadores e um Bush.

Dois dos discursos mais aplaudidos foram o de Tiffany Trump e o de Donald Trump Jr., respectivamente a filha mais nova e o filho mais velho do “futuro Presidente dos Estados Unidos”, como ambos sublinharam. O primeiro correu muito bem, com Tiffany Trump, de 22 anos, a revelar o lado mais doce do pai, que é uma pessoa “muito amigável, atenciosa, bem humorada e verdadeira”, e que lhe valeu uma enxurrada de tweets. O segundo serviu também para mostrar o lado mais humano do candidato do Partido Republicano, mas acima de tudo a sua capacidade para fazer negócios, já que o lema do segundo dia da convenção foi “Make America Work Again”.

Os jornalistas de todo o mundo ainda salivaram com a possibilidade de um segundo caso de plágio nos discursos de membros da família Trump, mas tudo não passou de um falso alarme – uma parte do discurso de Donald Trump Jr. foi retirada de um ensaio do professor de Direito Franck Buckley publicado na revista The American Conservative, mas depois de uma breve onda de histeria no Twitter, o autor acabou por revelar que tinha contribuído para a escrita do discurso.

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