"Purga" de Erdogan já levou a 7500 detenções e 8500 demissões

A rapidez (e a dimensão) da resposta do Governo turco ao golpe levanta suspeitas em Bruxelas. Presidente turco diz que a pena de morte regressará, se "o povo o exigir".

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Soldado de um posto de controlo na ponte Bósfoto, em Istambul, a ser agredido por populares, no sábado de manhã AFP

Aos mais de seis mil membros do Exército e do sistema judicial turcos, que tinham sido demitidos e/ou detidos depois do golpe de Estado falhado de sexta-feira, juntaram-se esta segunda-feira cerca de oito mil agentes da polícia, suspensos por suspeitas de colaboração com os revoltosos que pretendiam derrubar o Governo. O Ministério do Interior exonerou 30 governadores regionais, e o Ministério das Finanças afastou 1500 funcionários por suspeitas de terem ligações à rede do imã radicado nos Estados Unidos Fethullah Gülen, que o Presidente da Turquia, Recep Erdogan garante ter sido o mentor do golpe.

Além do mentor e instigador — Gülen, o seu arqui-inimigo —, Erdogan identificou esta segunda-feira o autor do golpe: o general de quatro estrelas Akin Ozturk, detido desde sábado, e que segundo informou a agência Anadolu, ligada ao Governo, confessou em interrogatório ter dado as ordens para o levantamento militar, "com a intenção de levar a cabo um golpe de Estado". Mas esta confissão foi prontamente desmentida por outros meios de comunicação turcos, que descreveram Akin Ozturk como um "bode expiatório". "Não fui eu a pessoa que planeou ou dirigiu a tentativa de golpe do dia 15 de Julho nem sei quem foi", terá sido a resposta do general aos procuradores, segundo as cadeias independentes NTV e Haberturk.

Quando foi detido, juntamente com outros, o general que comandou a Força Aérea até ao ano passado negou qualquer envolvimento no golpe. No fim-de-semana, exibia uma ligadura à volta da cabeça, e vários ferimentos nos braços; esta segunda-feira, fotografado no tribunal de Ancara, tinha um penso sobre uma orelha. Como assinalava o Wall Street Journal, era impossível verificar de forma independente o teor das suas declarações, ou sequer se tinha tido direito a representação jurídica.

Além de Akin Ozturk, acusado de ser o cabecilha do golpe, foram interrogados outros 26 generais e almirantes, também eles fotografados com nódoas negras (no total, foram detidos 103, um terço das chefias militares da Turquia). Entretanto, sete procuradores turcos acompanhados da polícia estiveram na base militar de Incirlik, que alberga o largo contingente de 2500 soldados da Força Aérea dos Estados Unidos que lidera a coligação internacional que combate o Estado Islâmico no Iraque e na Síria.

Não foi dada uma explicação oficial sobre a investigação: o general Bekir Ercan Van, responsável máximo da base, e outros dez militares turcos foram detidos e a imprensa especulava que o inquérito teria a ver com suspeitas de que um avião de reabastecimento tivesse sido usado pelos golpistas. As autoridades cortaram o abastecimento eléctrico e deixaram a base de Incirlik às escuras. O Pentágono esclareceu, porém, que o corte não prejudicou as suas operações. A NATO também informou que nenhuma das suas missões na Turquia foi afectada pelo golpe.

Ajuste de contas

A multiplicação de detenções e acusações parece provar que a "purga" do aparelho de Estado prometida pelo Presidente e pelo Governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), é realmente um ajuste de contas. A "limpeza", que começou por atingir militares e magistrados, incluindo juízes do Tribunal Constitucional e do Supremo, já se estendeu a vários outros ramos do Estado, e as acusações poderão ter consequências dramáticas: o Governo mantém a sua intenção de apresentar à discussão, no Parlamento, uma proposta legislativa para a recuperação da pena de morte para crimes de insubordinação e traição à pátria.

o que se pede na rua, e para nós os pedidos do povo são ordens. Mas não vamos tomar decisões a quente, vamos discutir com os restantes partidos porque essa mudança exige uma revisão constitucional", explicou o primeiro-ministro, Binali Yildirim. Para já, de todos os partidos de oposição (que em uníssono condenaram o golpe), só o Partido Democrático do Povo (HDP, pró-curdo) se manifestou contra o regresso da pena de morte. Esta segunda-feira, o Partido Republicano do Povo (CHP), maior bancada depois do AKP, emitiu um comunicado defendendo justiça para os golpistas e recomendando que o Exército não seja descrito como um inimigo.

Numa entrevista à CNN, transmitida segunda-feira à noite, o Presidente Erdogan também defendeu o regresso da pena de morte, "se o povo o exigir".  "Não podemos ignorar as exigências do povo", disse. "Hoje em dia não há pena de morte na América? Na Rússia? Na China? Em países em todo o mundo? Só os países da União Europeia não têm pena capital", disse Erdogan.

De acordo com o primeiro-ministro, esta segunda-feira foram formalmente acusadas mais 316 pessoas, por associação à revolta. Yildirim não se referiu ao teor das queixas, nem divulgou identidades, disse apenas que até ao momento foram detidos 7543 indivíduos e estimou que esse número aumentará nos próximos dias.

A rapidez com que o Governo turco está a agir contra os revoltosos é a nova preocupação dos líderes internacionais e aliados ocidentais da Turquia, depois do "susto" com a possibilidade de um período de vazio de poder e caos institucional. Esta segunda-feira em Bruxelas, os ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia apelaram a que "sejam tomadas todas as medidas para evitar mais violência, para proteger a população e para restaurar a calma e normalidade" no país. "A UE apela ainda à observância da ordem constitucional e sublinha a importância do respeito pelo Estado de Direito e as instituições democráticas", dizia um comunicado assinado pelos 28 ministros.

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, que acompanhou a cimeira europeia como observador, concordou que a lei deve ser aplicada para punir os golpistas, mas alertou para a necessidade de manter vigentes os "princípios democráticos" e o respeito pelos direitos humanos no exercício da justiça. Mais contundente, a alta representante da União Europeia para a Política Externa, Federica Mogherini, disse que "a Turquia tem de respeitar a democracia, as liberdades fundamentais e os direitos humanos".

Numa conversa telefónica com o Presidente turco, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, lembrou que na resposta à tentativa de golpe não se pode pôr de lado as regras do Estado de Direito, e disse que os últimos desenvolvimentos na Turquia, e particularmente a actual vaga de detenções e demissões, é "motivo para grande preocupação" para ela própria e para os restantes parceiros da União Europeia.

Pena de morte? "Incompatível"

Embora Bruxelas não veja, pelo menos por enquanto, razões suficientes para rasgar o acordo firmado em passado para conter os fluxos migratórios da costa da Turquia para território europeu, a chanceler alemã sublinhou que a reintrodução da pena de morte é "totalmente incompatível" com a pretensão do Governo turco de aderir à União Europeia. Uma fonte do Governo alemão, citada sob anonimato pelas agências, disse que se esse passo for dado, acabarão todas as negociações com vista à inclusão do país no bloco europeu.

O austríaco Johannes Hahn, o comissário europeu que supervisiona as negociações para o alargamento, manifestou dúvidas quanto ao golpe. "Dá ideia que já havia alguma coisa preparada. As listas [de supostos culpados] foram imediatamente disponibilizadas, o que indica que já tinham sido feitas antes para ser usadas quando fosse necessário", declarou. Para Hahn, a leitura daqueles que consideram que o Governo turco está a aproveitar o fracasso do golpe para atingir inimigos e adversários políticos poderá não estar muito errada. "Era exactamente o que se temia. Estou muito preocupado", confessou.

Segundo John Kerry, a reacção do regime turco poderá não só comprometer a sua relação com a União Europeia como também com a NATO. O secretário-geral da aliança, Jens Stoltenberg, disse que falou com Erdogan para lhe dar conta da satisfação com a "grande coragem demonstrada pelo povo turco, e pelo forte apoio de todos os partidos políticos ao seu Governo democraticamente eleito" – mas também para lhe lembrar que a Turquia, como "valioso aliado" da NATO, tem de cumprir os critérios democráticos. "Como membro de uma comunidade de valores, é essencial que o país assegure o respeito pela democracia e as suas instituições, pelo Estado de Direito e pelas liberdades fundamentais", afirmou, em comunicado.

Perante esta avalanche, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia respondeu que as críticas eram "inaceitáveis" e correspondiam a um apoio encapotado aos golpistas. Entretanto, imagens perturbadoras mostrando dezenas de soldados amarrados, despidos, deitados praticamente uns em cima dos outros em salas fechadas, vieram a público (já tinham aparecido vídeos com violentas agressões a militares – num deles, vê-se um soldado com vários ferimentos tombado no chão, numa piscina de sangue).

Do gabinete do primeiro-ministro (que cancelou todas as férias dos seus funcionários) vieram novos pedidos para que a população saísse à rua em defesa do Governo e da democracia. Yildirim também renovou a sua exigência de extradição de Fethullah Gülen dos Estados Unidos, que Washington fez depender da apresentação de provas do seu envolvimento no golpe em vez de meras suspeitas. "Estamos muito desapontados que os nossos amigos americanos continuem a pedir-nos provas quando membros de uma organização terrorista tentam destruir um Governo eleito sob as ordens dessa pessoa. Leva-nos a questionar esta amizade", declarou.

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