Há um Porto de guitarras, a levar sons para todo o mundo

Há duas lojas no Porto dedicadas especificamente aos instrumentos de cordas tradicionais portugueses que exportam para todos os continentes. A maior parte das encomendas chegam da Austrália, dos Estados Unidos e do Canadá.

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Paulo Pimenta
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Mal se entra no número 29 do Largo dos Lóios, no Porto, ouvem-se os acordes, não se percebe muito bem se de uma guitarra ou de uma viola baixo. O tom é baixo, mas é mesmo uma guitarra clássica equipada com cordas que conferem ao seu som um tom mais grave, uma oitava abaixo do habitual. A dúvida foi desfeita por Davide Amaral, músico que, de visita à Porto Guitarra, uma das duas lojas dedicadas exclusivamente aos instrumentos de cordas tradicionais que existem na cidade, está a testar uma forma de amplificação recorrendo a um microfone de dimensão reduzida que se cola no corpo da guitarra.

Esta é apenas uma das experiências que levam o músico de Águeda, professor no conservatório local, a deslocar-se à Invicta sempre que pode, para visitar um espaço com características que diz não existirem noutra localidade próxima de onde vive. O guitarrista dos Trio Porteño, projecto que divide com um dos acordeonistas dos Danças Ocultas e com o guitarrista dos Patinho Feio, conheceu a loja através do amigo de um amigo. A banda, que começou por tocar versões de Piazzolla, lançou-se na composição de originais, mas, de acordo com Davide, era necessário adicionar um elemento extra que lhe conferisse uma sonoridade peculiar. Foi então, com a ajuda do proprietário da Porto Guitarra  Agostinho Rodrigues, mas que responde por "Tico" , que desenvolveu uma guitarra de sete cordas que cumprisse o objectivo: uma guitarra com tampo de cedro, com uma sonoridade mais grave e com mais amplitude para poder abraçar mais notas com a abertura da mão.

Para "Tico", estas “aventuras”  como as descreve  são sempre um “tiro no escuro” e desafiantes. É um processo que se baseia muito na ideia de tentativa erro, e que se vai ajustando até se atingir o que se procurava, como no caso do projecto da guitarra de sete cordas que considera ter sido executado com êxito.

Esta personalização de instrumentos é uma das partes fundamentais do projecto a que se dedica, mas não é a única. O espaço nasceu há cerca de quatro anos com um objectivo muito específico: ser exclusivamente orientado para instrumentos de cordas tradicionais. Partindo dessa noção, o proprietário explica que quis criar um espaço que fosse ao mesmo tempo ponto de venda, oficina de recuperação e de construção, aliado a uma componente mais educativa, que passa pela organização de workshops e de concertos.

Após quatro anos a trabalhar em África como engenheiro mecânico, "Tico" regressou ao Porto pronto a pôr em prática um sonho antigo. Desde os 13 anos que toca guitarra regularmente. Quando tinha 28, construiu o primeiro bandolim com a ajuda de Domingos Capela, reconhecido violeiro do século XX. Desde então, foi fazendo, paralelamente à actividade de engenheiro, alguns instrumentos para amigos. Já na casa dos 40, com a “almofada” que trouxe de África, apesar dos convites que teve na sua área profissional, abandonou a engenharia mecânica e seguiu a sua “paixão”.

Numa fase inicial, a loja estava no primeiro andar do mesmo edifício, o que, para "Tico", apesar de ter menos visitantes, tinha as suas vantagens: “As escadas funcionavam como filtro. Não é qualquer pessoa que sobe umas escadas para entrar numa loja de música; por isso, só lá ia quem queria mesmo procurar alguma viola”, brinca. 

Pela loja já passaram músicos vencedores de Grammys e vários artistas nacionais e internacionais mais populares e reconhecidos do público, alguns clientes regulares, como é o caso de Miguel Araújo, Júlio Pereira, Daniel Cristo, António Zambujo, Miguel Araújo, Raúl Olivar, artista espanhol de flamenco, Graig Ross, guitarrista de Lenny Kravitz, ou Gail Dorsey, baixista também de Kravitz, David Bowie e Tears for Fears. Embora não seja músico profissional, recorda também a visita do actor Ewan Mcgregor, que, segundo "Tico", tem um amigo no Porto que lhe recomendou a loja, à qual se deslocou para comprar um cavaquinho brasileiro.

No dia em que lá foi, o actor ficou com uma guitarra portuguesa “debaixo de olho”, que levou noutro dia, quando lá regressou. Escolheu um modelo exclusivo da Eiffel, desenhada pelo designer Jorge Almeida, que tem uma rosácea inspirada nas pontes de ferro projectadas pela empresa com o mesmo nome e marcadamente associadas à cidade. É comum haver pedidos de personalização que remetam para referências locais, como, lembra, o caso de uma canadiana que pediu uma guitarra com um guarda-unhas “a imitar sardinhas” para se poder recordar de Portugal. A guitarra foi baptizada de "Sardine".

Apesar de a loja estar situada numa zona de grande afluência de turistas, "Tico", não descartando a importância desse potencial público, faz questão de esclarecer que o espaço não é propriamente uma loja de recordações: “Há, de facto, muitos estrangeiros que cá vêm, mas são na sua maioria músicos que fazem turismo na cidade. Há quem possa levar um instrumento mais pequeno, como um cavaquinho, para recordação, mas isto não é propriamente uma gift shop”, explica. Sublinha ainda que vende para todo o mundo, a partir da plataforma online da loja, sobretudo para países como China, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Canadá, Chile, Uruguai, Argentina.

Configuração "exótica"

O mesmo padrão de vendas para o estrangeiro é seguido pela Casa da Guitarra, na Avenida Vímara Peres, próximo do tabuleiro superior da Ponte Luiz I, que partilha o mesmo conceito com a Porto Guitarra por derivarem de um projecto inicial levado a cabo anteriormente pelos proprietários das duas lojas, que deu origem a estes dois espaços. O responsável pela Casa da Guitarra, Alfredo Teixeira, destaca a Austrália, os Estados Unidos e o Canadá como os países de origem da maior parte das encomendas.

Embora não tenha uma explicação “científica” para isso, Alfredo Teixeira suspeita de que no caso dos Estados Unidos e do Canadá, isso pode estar de certa forma ligado ao facto de a guitarra folk americana ter cordas de aço, como a maior parte das guitarras encomendadas para esses países. Enviadas para todos os continentes, diz também que a configuração estética de algumas violas suscita alguma curiosidade por parte de músicos estrangeiros, um factor “exótico” que, admite, pode funcionar como atracção.

As duas lojas vendem instrumentos de cordas tradicionais nacionais, ou que tenham alguma ligação com o país, construídos em Portugal. É possível encontrar vários tipos de violas regionais portuguesas, também conhecidas por violas de arame, como a viola da Terra, Tueira, Beiroa, Braguesa, Campaniça, Amarantina ou a viola de arame da Madeira. Da família dos cavaquinhos há a Braguinha, o Rajão, o de Cabo Verde ou o Brasileiro, que tem um braço mais estreito e uma caixa mais funda. Ainda na família dos cavaquinhos, há o Ukelele, instrumento havaiano, que, explica Alfredo Teixeira, foi inspirado no cavaquinho levado para o Hawai por um emigrante madeirense que foi trabalhar na plantação da cana-de-açúcar. Na categoria dos bandolins, há a bandola, o bandoloncelo ou o banjolim. As guitarras portuguesas estão representadas pela do Porto, de Lisboa e de Coimbra.

Tanto numa como noutra loja, semanalmente existem apresentações ao vivo, de entrada livre dentro dos géneros musicais mais tradicionais. Na Porto Guitarra, "Tico" destaca a roda do chorinho, às terças-feiras, uma tertúlia musical aberta a quem quiser tocar. Na Casa da Guitarra, o destaque vai para as sessões de fado.

O último violeiro do Porto

António Luciano, nascido na rua da Bainharia, na Sé do Porto, há 68 anos, passou a "Toni das Violas" aos nove anos, quando, com ajuda do seu avô, construiu o primeiro cavaquinho. A partir dessa altura, “ficou vacinado”, como diz, e nunca mais deixou o ofício. É um "violeiro" – assim se define. É português, faz violas, por isso é violeiro e não luthier, que é a mesma coisa, “mas para quem é francês”. Trabalhou 40 anos na Casa António Duarte, na Rua de Mouzinho da Silveira: “Uma vida”, reflecte.

Há 15 anos, montou o seu atelier na rua que o viu nascer. Não tem letreiro, tem número. É o 60 e está em cima da porta do "Toni das Violas", que é avesso às marcas, mas carrega o peso de uma no seu nome. Lembra-se de na década de 1970, num raio de 150 metros da sua rua, existirem “uns sete ou oito violeiros”. Hoje está sozinho na Bainharia, na casa onde há mais de 100 anos, por volta de 1870-80, trabalhou o violeiro Belmiro da Cunha Melo, “genro do Melo mais conhecido”.

António Luciano continua a fazer violas com as suas próprias mãos, e a reconstruir “pedaços de história” que muitas vezes têm mais valor sentimental do que monetário. Recorda-se de lhe ter passado pelas mãos a primeira viola do Rui Veloso, entregue pelo avô que a levava para manutenção ainda à loja da Mouzinho da Silveira.

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