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Em Portugal numa missão dupla, Billy Bragg será esta segunda-feira orador no congresso Keep It Simple, Make It Fast, no Porto, actuando depois a 30 de Julho no FMM Sines. É ir ouvir um dos nomes mais importantes da música com postura política, um filho dileto da tradição de Woody Guthrie.

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Concerto a 30 de Julho no Festival Músicas do Mundo, Sines, após passagem pela Casa da Música, a 18, no congresso Keep it Simple, Make it Fast

Billy Bragg chama a Margaret Thatcher a sua “educação política”. Em 1984, ano da eclosão da greve dos mineiros do carvão que agitou a Grã-Bretanha e a que Bragg se juntaria de corpo e alma, o músico britânico emprestou a sua voz à revolta dos trabalhadores em protesto contra o encerramento de 20 minas (havendo suspeitas de que pudessem ser muitas mais). Ao lado de centenas de outros artistas, realizou espectáculos cujas receitas iam directamente para as contas de supermercado e para qualquer garante de subsistência básica das famílias afectadas (sobretudo no sul do País de Gales) por uma greve considerada ilegal pelos governantes. Enquanto Thatcher mantinha o braço-de-ferro, a ocasião forçou Bragg a ser consequente com as posições políticas que já antes infiltravam a sua música. Com a chegada desse momento histórico, era altura de provar que as palavras inflamadas da sua música não morriam, afinal, com o fim de cada canção.

“Antes da greve dos mineiros”, confessa o cantautor ao ÍPSILON, “compunha canções que eram políticas mas pessoais. A partir desse momento comecei a escrever canções ideológicas.” Alguns títulos do álbum que se seguiria, Talking With the Taxman About Poetry (1986), não escondiam a explicitação do seu discurso: Ideology ou There is power in a union. A greve terminaria passado um ano – numa renhida votação do sindicato, selada a muitas lágrimas e revolta – e, ainda hoje, Billy Bragg não tem dúvidas em argumentar que a vitória da “dama de ferro”, a vitória de um patronato que se via posto em causa pelo aumento. A vitória de Thatcher – que reduziu drasticamente a intervenção do Estado e os apoios sociais, fez disparar o desemprego e abraçou o neoliberalismo –  sobre os mineiros é mesma vitória que, escreveu o músico em 2009 no Guardian, conduziu à crise financeira global dos últimos anos. A da avidez insaciável de um capitalismo cada vez mais desabrido e descontrolado.

Nesse mesmo texto evocatório do 25º aniversário da greve dos mineiros, Billy Bragg acusaria Thatcher de “destruir comunidades inteiras” e de apoiar a destruição da indústria britânica, trocando a produção local (defendida pelos sindicatos) pela importação, por exemplo, na indústria automóvel. O exemplo é tudo menos casual. Henry Ford, o empresário norte-americano que implementou o conceito da produção em série, garante Billy Bragg ao ÍPSILON, foi o principal responsável por ter pegado numa guitarra e começado a escrever canções. Causa e efeito unem-se num caminho pouco directo, mas fácil de seguir: “Quando era miúdo vivia numa cidade em que o principal empregador era uma fábrica de automóveis. Todos os anos, os rapazes da escola iam visitar a fábrica e eram-nos explicados os vários empregos que existiam ali. Como disse que não queria trabalhar na fábrica, o meu professor disse-me que tinha três opções alternativas – exército, marinha ou força aérea. E percebi que para me escapar a esse destino de trabalhar na fábrica tinha de inventar outra coisa para fazer. Ter uma banda e tocar guitarra foi a minha resposta a isso.”

Num quarto das traseiras, em casa da mãe, começou então a juntar-se, em meados da década de 70, com alguns amigos e a ensaiar as primeiras canções, fortemente inspiradas pelos “singer-songwriters americanos dos anos 60”. “Tentava escrever canções como o Bob Dylan ou o Jackson Browne”, recorda, porque “escreviam canções que diziam alguma coisa sobre o mundo. Eu tentava fazer o mesmo.” A ideia que lhe povoava o espírito criativo era tão simples quanto se revelaria eficaz – se as canções tinham um efeito tão poderoso em si, talvez pudesse tentar replicar esse mesmo efeito nos outros.

Na sua recente passagem pelo festival de Glastonbury, Billy Bragg teria uma das mais arrebatadoras confirmações dessa mesma capacidade de tocar a vida dos outros. No dia imediatamente a seguir à votação do Brexit, a reconhecida postura política de Bragg fez daquele um concerto de uma urgência diferente de qualquer outro, sendo o músico mais óbvio em terras britânicas sobre o qual concentrar a frustração com o resultado do referendo por parte de muitos milhares que se encontravam no festival. “O público estava tão implicado emocionalmente que, quando entrei em palco, no início do concerto, fizeram um ruído que habitualmente só fazem quando termino. Soube então que seria um daqueles casos em que em vez de conduzir o concerto estaria a cavalgá-lo. A resposta emocional era tão forte em relação ao que tinha acontecido que escolhi as minhas canções e as minhas palavras para lhes permitir darem largas aos sentimentos por que eles estavam a passar.”

Essa comunhão sentida por Bragg em concerto, comprovável na muita choradeira e na intensa gritaria que acompanhou a actuação, prolongou-se ainda pelos dias seguintes. Sempre que, em Glastonbury, o músico ia “tomar um café ou qualquer coisa semelhante” no recinto, era abraçado em jeito de agradecimento pelo escape emocional que proporcionara. “A música não é terapia apenas para mim”, diz-nos, ao recordar que cada canção – apontada a factos políticos, a relações amorosas ou de poder, ou às suas próprias falhas – costuma partir de um momento em que se sente “zangado” com qualquer coisa, aparecendo depois no escuro, partilhando essa criação com público. “Depois eles aplaudem”, descreve, “e eu não me sinto tal mal sobre o assunto.” Nesse sentido, “é já, também para mim, uma terapia”.

Ou a favor ou contra

Desde a greve dos mineiros, quando Billy Bragg sentiu que toda a sua relação com a música se reconfigurava, que o músico não se recorda de tempos tão turbulentos no Reino Unido quanto estes que se sucedem à votação no Brexit. Falamos no dia em que Nigel Farage, um dos principais promotores da saída do país da União Europeia, se demite de líder do UKIP e em que reina a incerteza sobre o momento em que será accionado o artigo 50 do Tratado de Lisboa, gatilho indispensável para o início das negociações entre as duas partes. David Cameron é, nesta altura, um primeiro-ministro demissionário, Boris Johnson anunciou já a sua recusa em candidatar-se a líder dos Conservadores e o país tomou uma decisão cujas consequências são não apenas imprevisíveis como se desconhece o dia em que será, de facto, posta em marcha. “Estou muito preocupado”, admite o músico. “Mesmo nas eleições em que os Trabalhistas perdem sabemos sempre que haverá um debate sobre o caminho que estamos a tomar e que teremos uma nova oportunidade, passados cinco anos, com outra eleição.”

Bragg cita uma sondagem recente em que 75% dos inquiridos, num universo apenas de votantes na saída da União Europeia, não acreditavam que os políticos cumprissem com essa manifestação da vontade popular. Se nisto identifica, com tristeza, um cinismo generalizado relativamente à sua chamada a pronunciarem-se, o músico também se diz actualmente “a tentar manter a crença na democracia”. E por muito que não esconda a discordância da maioria dos votantes, frisa que “ou somos a favor da democracia ou contra e, portanto, não podemos escolher aceitar apenas os resultados que queremos”. “Os muitos jovens que se manifestaram em Londres dizendo que devíamos ignorar este resultado e fazer outro refendo são iguais a todos aqueles que conspiram contra Jeremy Corbyn e querem uma nova eleição para líder dos Trabalhistas quando ele é um líder eleito.”

Em discussões que tem mantido no Twitter, descreve, tem percebido que “aqueles que votaram no leave continuam muito zangados”. Talvez porque, arrisca o músico, pertencem ao coro de vozes que, em consequência do sistema eleitoral britânico – o chamado first past the post, composto por círculos uninominais -, nunca sente a sua opinião escutada pelos governantes. A suspeita de que, mais uma vez, possam ser ignorados no caso de a vitória não ser consequente ou de ser convocado um novo referendo, contribui por estes dias para que o ambiente seja tenso e potencialmente explosivo.

Não há tweets em palco

Billy Bragg volta a falar-nos do Twitter quando considera que o poder transformador da música tem vindo a esbater-se nas últimas décadas. “No século XX a música era o nosso único medium social. Quando eu tinha 19 anos, se queria que o mundo soubesse aquilo que estava a pensar tinha de aprender a tocar guitarra, compor uma canção e fazer um concerto. Agora, se tenho 19 anos e quero que o mundo saiba aquilo que penso, posso fazer um tweet, escrever um blog ou até fazer um sacana de um filme no meu telemóvel.” A única conclusão possível é a de “a música perdeu o seu lugar de vanguarda enquanto meio de comunicação entre as pessoas”.

Nada que tire o sono a Billy Bragg. Os concertos, como aquele que dará a 30 de Julho no Festival Músicas do Mundo, em Sines – após uma passagem pela Casa da Música, dia 18, como orador do congresso Keep it Simple, Make it Fast –, continuam a proporcionar uma comunhão incomparável a quaisquer 140 caracteres. “Nunca ninguém me convidaria a ir a Portugal para ler os meus tweets, nunca ninguém vai a Glastonbury para assistir a um tipo no palco a fazer um post no facebook.” Tal como o seu pai não compreendia o que Billy fazia, também ele não procura agora compreender as preferências de uma nova geração. Aceita-as, simplesmente. Com a certeza e o orgulho de, no final dos anos 90, ter sido contactado por Nora Guthrie, filha do lendário Woody Guthrie – o homem de This land is your land, o epítome da canção de alcance político, o portador de uma guitarra com a inscrição “this machine kills fascists” –, que lhe entregou uma série de poemas nunca gravados pelo seu pai e que se podem ouvir em Mermaid Avenue.

“Essa oferta da Nora Guthrie fez-me sentir parte da família. O Woody Guthrie é o pai da minha tradição”, diz Bragg. Tal como ele, agora, é o seu mais notável – e quiçá o último – representante.

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