Então ficámos aqui, sentados, durante a noite

Antes que matem os elefantes é um caso à parte na dança-teatro de Olga Roriz.

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PAULO PIMENTA

A escuridão do teatro enche-se com vozes de crianças sírias. Frases como a do título deste texto, sem imagens, fragmentos de histórias e desabafos, projectados na tela negra ao fundo do palco. A luz cresce sobre a cena e, na penumbra, distinguimos o interior de um apartamento em ruínas. Como depois de uma explosão, há pó no ar e pedras pelo solo; num maple carmesim, um homem fita o vazio; um frigorífico esventrado e, ao canto, por entre cobertores rasgados e colchões sujos, um corpo em espasmos. Até a teia de iluminação, suspensa em desequilíbrio, parece ameaçar abater-se sobre esta domesticidade estilhaçada. Há vultos em redor, paira um silêncio pesado, apenas cortado pelo som ritmado das pedrinhas maquinalmente lançadas ao chão por um indivíduo de expressão ausente.

Inscrita num tempo e num lugar precisos – o conflito na Síria, a tragédia dos refugiados –, esta peça é um caso à parte na dança-teatro de Olga Roriz. Mas aqui não se quer uma representação do desastre. Luta-se por criar um interstício, entre a vida real e a visão mediatizada a entrar todos os dias pelas nossas casas. Um subtil apontamento sonoro coloca em fundo fragmentos noticiosos: um hábil zoom-out a pôr em contraste gente verdadeira e a ladainha informativa que distancia e amolece as consciências.

Trazer este assunto para a cena é percorrer um caminho minado: como tocar a alma do cidadão, confortavelmente sentado nos (ainda seguros) auditórios europeus, sem produzir o enésimo lugar-comum sobre a catástrofe? Como subtrair a arte da perversa função de redimir a má consciência dos favorecidos? Como contornar o risco da estetização do mal?

A estas questões, Roriz e os seus sete intérpretes (quatro homens, três mulheres), respondem com crueza e sem concessões: durante cem minutos, entramos na náusea opressiva daquele vulnerável apartamento em Alepo. Um huis-clos, onde se se sucedem ciclos de violência e de calmaria prenhe de tensão; qual pesadelo nocturno, parecem não ter fim: tudo aparenta serenar, mas regressa o medo, há nova atrocidade perpetrada sobre alguém.

Para esta criação colaborativa, Roriz foi conhecer refugiados à Grécia; os intérpretes assistiram, decerto, a documentários de que recolheram situações que expandiram a partir de pesquisas introspectivas próprias. Reconhecemos, no palco, aquela gente amarrotada a deambular pelos escombros; hordas cambaleantes e assustadas a caminhar no escuro guiadas pela luz tíbia de lanternas; tropeça-se em corpos agonizantes, jogados e amontoados, como objectos inúteis. 

Mas uma absurda pulsão de vida persiste: um casal tenta abraçar-se, gestos de ternura que ficam em suspenso; uma mulher lava o cabelo, enquanto outros carregam pedras em alguidares, quais Sísifos do nosso tempo, para construir não se sabe o quê. Quando irrompe a nostalgia de um lamento, a belíssima voz de Dahfer Youssef convoca o canto dos muezzin, um breve conforto, quase fado.

A repetição de alguns uníssonos coreografados parece, neste conjunto, hesitar em encontrar um sentido, como se Roriz se questionasse sobre o que pode a dança fazer ali.

Se a duração da peça é parte da sua espessura, concorre para uma certa planura dramática. Como resolver este ciclo de desolação? Não o resolvendo. A peça termina como se voltasse ao início; o flagelo continua, não se vislumbra outro devir. Por isso, não sabemos bem o que aplaudimos; como se bater palmas se afigurasse um acto pouco apropriado.

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