Wim só quer vender a casa do homem da lotaria

Wim e o companheiro montaram um hotel na casa de um homem a quem um dia saiu a sorte grande. Mas as coisas mudaram. Foi a aldeia alentejana de Deixa o Resto a contar-lhes a história do casarão com lustres de cristal nos tectos e torneiras em forma de peixes dourados.

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Depois de terem abandonado a ideia de ir viver para o Sri Lanka, esta foi a quarta casa que Wim e Ed visitaram em Portugal. Cumpria os requisitos, “ser grande e ser diferente”, e ficava num sítio mais agradável do que a anterior, que era “um grande palácio cor-de-rosa” no centro do país que visitaram numa altura do Verão em que tudo à volta parecia estar a arder.

Depois, chegaram àquela pequena aldeia, não muito longe da praia, que se chamava Deixa o Resto, explicaram-lhes que em inglês o nome queria dizer Leave the rest. Ali, o mediador imobiliário tinha para lhes mostrar aquela casa com varandas de barras verticais de metal dourado. Nada de especial a assinalar. Para além de uma fachada comprida.

Entraram. Wim Mertens achou-a estranha, não gostou, preferia algo mais simples; o seu parceiro Ed adorou. Era tudo o que ele queria e mais, “espectacular”: os lustres em forma de lágrimas de cristal pendurados de tectos com arabescos de estuque em dois enormes salões, chão forrado a granito reluzente.

No hall, impunha-se o painel de azulejos com a cena de caça — cavaleiro de espada em riste em cima de cavalo empinado.

Os oito quartos do primeiro piso eram cada um de sua cor, casas de banho privativas em combinação cromática: havia-as com sanita, bidé e banheira em salmão, em rosa, em cor de laranja, em azul, ornadas com torneiras em forma de peixes dourados de barbatana alçada, prontos a deixar gotejar a água das respectivas bocas. Combinavam bem com os padrões dos azulejos  chamava a atenção o de pavões suspensos em roseirais de pétalas brancas.

Depois da ronda de visitas a casas portuguesas, Wim e Ed voltaram para Eindhoven, na Holanda, onde viviam casados desde que o país legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2001. E pensaram em qual delas haveriam de comprar, mais o parceiro do que ele. Porque Ed estava determinado e o dinheiro era mais dele, iria ser ele a desistir do negócio de seguros para se mudarem os dois para um país com sol, Wim iria apenas desistir de ser jardineiro.

Estava decidido. Na enorme casa vaidosa iriam então montar o clássico autodenominado “hotel de charme” com que o companheiro de Wim sempre sonhara. Até se arranjou uma daquelas campainhas de recepção de hotel que aparecem nos filmes, como uma taça metálica invertida, e mudaram-se para Portugal, para Deixa o Resto, próximo da Lagoa de Santo André (distrito de Setúbal).

Um bilhete fiado

Foi a aldeia a contar-lhes a história da casa que agora era deles. Era assim porque tinha sido construída por um homem a quem saiu a lotaria.

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Fachada da casa de família que Wim Mertens e Ed transformaram em hotel

Aconteceu no Natal de 1979, lembra-se bem o irmão do premiado, Manuel Rosa, 82 anos. Ele e o irmão, Fernando Simões, tinham voltado de Moçambique três anos antes, a seguir à independência da ex-colónia. Vieram com pouco, mas o suficiente para Fernando abrir um pequeno restaurante.

Naquele dia, o cauteleiro deixou-lhe o bilhete lá no restaurante, “para ele depois pagar”. Ficou com ele “fiadinho”, diz a aldeia. Depois, há-de o ter pago de volta, pensa o irmão.

No dia em que Fernando soube que tinha acordado homem rico apareceu-lhe à frente "já com um gerente da Caixa Agrícola". Cem mil contos em 1979 era como se fossem milhões de euros hoje em dia, eram tempos “em que o dinheiro rendia mais”, explica quem conta a história, como quem diz que aquela quantia, naquela altura, dava e chegava para resolver a vida, para ele e a família não terem de pensar mais em dinheiro.

Mas com aquela “abundância”, o seu irmão mais novo quis começar por construir uma enorme casa, a melhor que podia haver em Deixa o Resto.

Teve de mandar vir mestres de fora, o que ele desejava não dava para fazer só com gente dali. Vejam-se os florões de estuque pintados a branco e dourado na sala principal. “Era tudo do bom e do melhor”, recorda agora Manuel. Demorou dois anos a pôr de pé e a rechear.

Deixa o Resto acompanhou o erigir da casarona. Estava a ficar “bonita”. “Se me saísse uma batelada, também tinha um palácio”, pensou António Jacinto, um natural da aldeia, aprovando a ambição do sortudo. “Há lá salas como daqui até esta árvore”, diz Ilídio Gamito, proprietário de tasca com o seu nome, dando conta da largueza em metros dos salões que ele chegou a ver forrados de tapetes de Arraiolos.

Era uma casa muito grande, demasiado grande, chegou a dizer Manuel ao seu irmão. “Não precisas de tanto.” Mas Fernando não ligou. Na inauguração, “bebeu-se uns copos”, a cave tinha centenas de nichos para armazenar as garrafas de vinhos que aí se conservariam.

O homem a quem saiu a lotaria chegou a viver alguns anos na casa com a mulher e as três filhas, mas acabaram por não aproveitar muito a piscina ao lado da gaiola de pássaros em forma de cubata africana. O proprietário sofria de diabetes, adoeceu pouco tempo depois e morreu, continua o irmão.

A família herdou a casa e as dívidas. “Quando ele morreu, teve de se vender aquilo. Acabou por ir tudo por água abaixo. Quando as coisas dão para o lado do azar, é uma chatice”. “Ficou quase sem dinheiro depois de construir a casa”, comenta Julieta Santinho, também da aldeia.

A seguir à morte do premiado, a família ainda alugou quartos a pessoas de fora. As últimas inquilinas eram funcionárias do bar de strip tease Passerelle. “A gente vi-as passar rua abaixo, era agradável”, brinca Ilídio Gamito.

Depois, a família retalhou em três o terreno demasiado grande onde estava implantada a casa. Vendeu-os, para pagar “algumas das dívidas”, diz Manuel Rosa.

A riqueza não se reproduziu, parece ter parado ali, naquela geração. A mulher ganha a vida a vender lingerie numa pequena loja de esquina em Santiago do Cacém, recusa-se a falar da história da casa.

“A casa ainda podia ser deles”, lamenta Manuel Rosa, que vive próximo da moradia que era do irmão e à qual nunca mais voltou "desde que é ‘dos dois galos’”, conta, e nisso é um dos que não usam tom jocoso para se referir ao casal de estrangeiros.

Dois galos

O belga Wim Mertens e o seu companheiro holandês compraram a casa há 12 anos, quando ainda era da família de Fernando Simões, e ainda lá viviam as suas últimas inquilinas. Montaram o sonhado “hotel de charme”, como é descrito no site. Baptizaram-no Os Dois Galos, uma piscadela de olho aos potenciais hóspedes portugueses, por causa dos famosos de Barcelos, e o assinalar de uma união orgulhosa.

Tornou-se então um hábito oferecerem-lhes galos decorativos, normalmente aos pares, vinham das mãos da família e amigos em visita ao casal, até de hóspedes. A decoração escura e pesada do homem da lotaria alegrou-se de galos, uns pendurados na parede, outros em prateleiras, uns em quadros, outros em forma de suportes de copos.

As torneiras de casa de banho são peixes dourados
Relógio que ficou do antigo dono da casa a quem calhou um bilhete da lotaria premiado
Pormenor dos interiores
Sala de estar do hotel
Pormenor dos tectos trabalhados e lustres em cristal
Wim vive agora no último andar da casa, com uma decoração completamente diferente
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As torneiras de casa de banho são peixes dourados

Mas a sólida união acabou por chegar ao fim na casa de Deixa o Resto. Wim voltou para a Bélgica depois do divórcio, Ed para a Holanda. Wim refere-se a ele como “o meu ex”. O seu “ex” voltou a casar-se e abriu um café em Amesterdão.

Wim esteve sete anos longe de Portugal, a casa esteve alugada. Em Abril deste ano regressou, para tentar voltar a viver no país. “Gosto do tempo, da calma.” Está a tentar aprender português. O companheiro falava bem a língua mas corrigia-o muitas vezes, e ele foi-se acanhando.

Empacotar os galos que estavam por todo o lado foi começar de novo. Quando Wim os fechou em caixas de cartão, contou mais de 70. Quis deixar uns poucos cá fora, “os mais bonitos”: três galos desirmanados de cerâmica pintada à mão estão na parede da escadaria; na marquise de caixilhos dourados, ficou, sozinho, um galo com tamanho de criança em pose de empregado de mesa com bandeja pregada à mão.

“É parte da vida dele, não dá para pôr tudo em caixas”, diz Inge Steinbuch, a amiga holandesa que conheceu em Portugal e que se tornou uma espécie de conselheira de Wim tanto em decoração de interiores como na vida. “Ele precisa de começar de novo, mais solto.” E Inge está a tratar disso, tanto quanto possível.

Desapareceram as cores nas paredes dos quartos, pintou-se tudo de branco. Retiraram-se “os reposteiros bejes de folhos de tão boa qualidade que, se os deixassem”, ironiza Inge, “durariam impecáveis mais 100 anos”.

Nos lustres de tecto dos quartos continuam a cintilar as pedras de cristal, e os guarda-fatos embutidos ainda são em madeira escura, nogueira e pau-rosa incluídos, mas as mesinhas de cabeceira passaram a ser em branco da Ikea.

Há outras coisas que só não se mudam porque não há dinheiro. “Esta sanita bordeaux está a sair”, diz Inge. “É insubstituível”, não por ser muito valiosa mas porque se se avaria uma sanita colorida dos anos 1980 não é possível substituí-la por outra igual, tem de ser por uma branca mais recente, explica. A casa é um espelho desta miscelânea de estilos.

Mas há pormenores decorativos que Inge, que trabalha em design de interiores, considera intocáveis: “Os pavões ficam, os pavões têm de ficar”, diz divertida. “Há coisas na casa tão extremamente kitsch que se tornam quase bonitas.”

Depois, há o lado prático. A lotaria já saiu há quase 40 anos. “A quantidade de coisas que se estragam...” A última foi o sistema de aquecimento de água.

Há hóspedes que deixam queixas online, no site de reservas do hotel, sobre os problemas com a água quente, mas também há quem se pronuncie sobre o interior da casa. A maioria faz comentários negativos, como “decoração algo antiga”, ou “algo velhota”. Mas também os há positivos: “O interior do hotel era diferente. Um estilo francês, romântico.” “Casa intrigante com artefactos interessantes”, escreve outra pessoa, a mesma que classifica a casa de banho que lhe calhou, não se sabe de que cor, como “principesca”.

Agora o estilo que está em voga é mais despido, tudo branco, pouco povoado. É mais o estilo de Wim, discreto. A amiga sabe disso e, não sendo possível mudar a casa toda, por falta de verba, ajudou-o a criar uma espécie de oásis lá dentro, só dele. 

Inge conseguiu remodelar integralmente o último andar do hotel Dois Galos, onde o dono rico tinha instalados a mesa de bilhar e os matraquilhos. O chão é de soalho flutuante por onde se espalham almofadões modernos, as paredes são brancas e há um buda cinzento à entrada, tudo é luminoso. Se houvesse dinheiro, Inge continuaria a modernizar a casa, de cima para baixo.

Enquanto isso, a casa está à venda, há seis anos. “Se conhecerem alguém que a queira...”, diz Wim. O hotel continua aberto, para pagar as despesas.

A vivenda, que ainda está em nome dele e do companheiro, tornou-se pesada. Porque é um trabalho a tempo inteiro impedir a decadência do luxo datado do primeiro dono e porque Wim quer cortar com o seu passado “dois galos”. Quer seguir o seu caminho. “Era bom separar tudo. Pôr um ponto final.”

Se lhe saísse a lotaria, comprava uma casa pequena à beira da praia com quase nada lá dentro. Enquanto isso, resta-lhe mudar o nome ao hotel.

 

Notícia corrigida às 14h38: Eindhoven é uma cidade na Holanda e não na Bélgica, onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em 2001.

No próximo domingo da Série Casas Portuguesas: “Neste chão chorei, neste chão dancei, neste chão ri”

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