O sol queimou a pele, não a garra que o Mimo deu à música

Durante três dias, o Brasil andou por Amarante, descalço, dançando a saudade que tinha de um lugar onde nunca tinha estado. Na primeira edição do festival Mimo em Portugal, passaram pela cidade 20 mil pessoas e vários concertos históricos.

Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Tom Zé Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Selma Uamusse Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta
Fotogaleria
Concerto de Egberto Gismonti Paulo Pimenta

Ele que “estava com tanta saudade”, que “chegou das estrelas” de São Paulo, que tem “sangue de gasolina”. Ele, o Tom Zé, de 79 anos, homenageado e figura central do Mimo Festival, que este fim-de-semana deu um ar da graça brasileira a Amarante. Foram 16 concertos, 14 filmes, oito oficinas e workshops e 20 mil pessoas, em três dias com entrada gratuita.

O músico brasileiro encerrou com uma lição de humanidade a primeira de três noites de festival, no Parque Ribeirinho, junto ao Tâmega. Entre temas do álbum Vira Lata na Via Láctea (2014) e os mais célebres , Augusta, Angélica e Consolação e Esquerda, grana e direita, Tom Zé nunca calou – e até repetiu – a irreverência que fez dele o artista mais aclamado do dia e um dos mais falados no festival.

Fez questão de repetir músicas como Geração Y e Banca de jornal, para que o público entendesse “como deve ser”: “Podemos ser mais do que maldade fresca, podemos ser também alguma coisa humana.” O público concordou, talvez sentindo com ele essa “alegria filha da puta para carago". “Num mundo em que a ética está fora de moda”, Tom Zé foi “pescando a finura” do público e parou várias vezes para fazer ouvir as suas ideias, perante um mar de gente.

Feito de uma “força que ninguém sabe de onde vem” – ouve-se no público , o músico explica que tudo começou quando descobriu “que não era bom compositor, nem bom cantor, nem bom músico". "Foi nessa hora que eu me salvei. Desisti da música tradicional e comecei a trabalhar ali bem perto do ruído.” E foi nesse registo que o coro entoou o refrão de Salvar a humanidade: “Mas o que salva a humanidade é que não há quem cure a curiosidade."

O concerto terminou,Tom Zé despediu-se “para depois voltar” ao festival, nos quatro documentários que contaram a sua história e, com ela, a história do tropicalismo brasileiro, e no Fórum de Ideias, que sobrelotou a Casa da Portela, tantos os que queriam ouvir essa figura viva do Tropicalismo: “Tom Zí”, como insistem em chamá-lo pela Europa.

Também “danado” com os nomes tinha andado, um pouco antes, Egberto Gismonti. O mestre multi-instrumentista – daqueles que, não havendo piano, fazem o show das nossas vidas na guitarra de oito cordas – diz que o seu nome é fácil de pronunciar, “as pessoas é que complicam”. Não foi complicado de facto admirá-lo ao piano, no Largo de São Gonçalo, entre o Mosteiro e a escadaria, pelas suas habilidades musicais fora de série e pela simplicidade do artista que se levanta ao fim de cada música para agradecer e olhar o público.

Gismonti interpretou géneros que, segundo o próprio, “mostram aquilo que é o Brasil”: o frevo, o baião, o choro e o samba, entre outros, que vivem e viveram das influências do fervor criativo norte-americano, da vibrante América Latina, das raízes africanas e da “alma” que chegava da Europa.

André, de 22 anos, e Gabriel, 20 anos, lá estavam, de câmaras e aplausos em punho, vindos de Braga com a actuação de Gismonti e de Hamilton de Holanda na cabeça. Como eles, a maioria do público desta primeira edição do festival: jovens que vieram chamados pelos nomes da música brasileira.

A emoção de Gismonti deu depois lugar à euforia com Selma Uamusse. Desconhecida de grande parte do público, já bem composto de festivaleiros e ocasionais visitantes da sala de concertos ao ar livre, a cantora moçambicana mostrou ser a verdadeira força da natureza do festival. E o público concordou desde cedo, levado pela sonoridade do changana – a língua mais falada no sul de Moçambique , pela percussão crua da banda e pelas Sabe Deus quantas vozes de Selma. É que ela faz muitas vezes a referência ao divino em que acredita, aos elementos e às suas origens. Somos transportados para outra dimensão, uma África muito sua, onde nos deu permissão para dançar. Dizia-se “cheia de amor”, tanto que o público lhe invadiu o palco e dançou com ela. Saiu de palco já descalça.

Na mesma onda de grandes ovações andou Custódio Castelo, que fez encher a Igreja de São Pedro na tarde de sábado. Centenas de pessoas, sentadas onde quer que houvesse lugar, assistiram ao seu concerto de guitarra portuguesa siamesa, instrumento único no mundo que junta na mesma caixa de ressonância a guitarra portuguesa de Coimbra e a de Lisboa. “É o mestre”, exclamaram vários no final, depois de longos aplausos de pé.

Brasil na música e na mesa

Entre sexta e domingo, não houve falta de Brasil em Amarante. Na música, nos sotaques, à mesa. As roulottes com tapiocas variadas e açaí na tigela estacionaram na avenida, ao lado das tripas de chocolate, dos crepes e – ou não fosse o Mimo um festival – das barracas de cerveja. Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia não andaram pela cidade, mas a sua presença foi constante. 

Os cafés locais bem iam avisando: “Prepara-te para o Mimo”. E a verdade é que o Mimo chegou como festival de verão, no pleno sentido da coisa. Esperando ou não a enchente destes três dias, a cidade soube responder à medida de um evento que atravessou o Atlântico para se realizar, pela primeira vez, fora do Brasil.

Vera, que trabalha num café a caminho do Largo de São Gonçalo, conta as graçolas de um dia em que muitos “perguntam onde é o samba”: lá vai indicando, perdendo-se, “porque há muitos palcos e muita coisa a acontecer”. 

Foi logo ao final de tarde de sexta-feira que começou a vir ao de cima o lado mais "alternativo" da cidade. Havia aqueles que, como André e Gabriel, faziam da relva a pista de dança. Estranho convida estranho para dançar e não há samba que falte nos pés descalços.

Mais de 24 horas depois, o ritmo volta a esses pés e é tempo de a zona ribeirinha ser um baile brasileiro. Já havia quem suspirasse pela falta de samba, mas chegam Hamilton de Holanda e o seu bandolim de oito cordas (mais duas do que o normal) para fazer a festa, e logo a seguir os sete músicos do Baile do Almeidinha, caras conhecidas dos workshops, e autênticas aulas de história da música, organizados pelo festival.

Nada se perde quando entram em palco as músicas de outras latitudes. O cabo-verdiano e antigo ministro da Cultura Mário Lúcio Sousa foi o primeiro dos convidados não-brasileiros e não demorou até que se ouvisse Cesária Évora. O fado veio pela voz e pela guitarra de Miguel Araújo, com E tu gostavas de mim, que compôs para Ana Moura já a pensar que podia dar “num chorinho brasileiro”. Terminou com Anda comigo ver os aviões, antes de dar o palco a Silvia Perez Cruz, a cantora espanhola de voz rasgada.

E se falamos de mundo, venha do Mali umas das referências maiores da guitarra em África. Vieux Farka Touré fez jus ao nome e ao estigma de ser filho do galardoado Ali Farka Touré. Já longe do samba, dança-se o rock africano e o público do Mimo dá-se ao mosh.

Antes, tinha havido João Fênix que, a abrir a noite, convenceu admiradores e cépticos de que é enorme a bandeira que carrega e de que a teatralidade e a simplicidade podem bem andar de mãos dadas. Num concerto em que percorreu o novo álbum De Volta ao Começo (2015), o músico de Pernambuco chegou a ganhar asas negras quando convidou o público a juntar-se ao seu mantra “de paz, porque o mundo está cheio de coisa ruim”.

Num século em que, para muitos, música brasileira se tornou sinónimo de coisa brega, tatuada com o populismo dos sucessos de Michael Teló e Gustavo Lima, ficou absolutamente claro que há muito neste Brasil da música que não encaixa nesses rótulos.

O festival encerrou no domingo com dois encontros de titãs: Pat Metheny e Ron Carter, duas lendas vivas do jazz norte-americano, subiram ao mesmo palco que, um pouco antes, Pedro Burmester e Mário Laginha tinham ocupado.

Para o ano, a data já está marcada: a 21, 22 e 23 de Julho o Mimo volta a Amarante.

Texto editado por Inês Nadais

Sugerir correcção
Ler 1 comentários