Na solidão, a dar forma a demónios

O romance pode ser um acto de resistência. Num tempo comandado pela rapidez e pela exposição pública, ele propõe lentidão e solidão. Juan Gabriel Vásquez, 43 anos, colombiano, escreve perto do real para o transformar com a imaginação, devolvendo-o em forma de grande pergunta: As Reputações.

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Juan Gabriel Vásquez é um dos autores mais celebrados da América Latina. A sua obra vê como a História interfere com o íntimo Daniel Rocha

Juan Gabriel Vásquez é um dos autores mais celebrados da América Latina. O seu romance O Barulho das Coisas ao Cair (2011) chamou a atenção da crítica norte-americana que aplaudiu o modo como escreveu sobre o narcotráfico, colocando-o na fronteira entre o público e o privado. É esse o lugar onde ele quer que os seus romances se situem: ver como a História interfere com o íntimo. Ja fizera isso com Os Informantes (2004) e mais recentemente em As Reputações, de 2013, publicado em Portugal no ano passado, e vencedor do Prémio Literário da Casa da América Latina. Neste romance, o colombiano questiona o lado efémero da imagem pública dos políticos e o poder do jornalismo no seu papel de denúncia e de formação da opinião. 

O protagonista, Javier Mallarino, é um caricaturista construído segundo a tradição satírica do país, consciente de que “o risco do desenho é transformar-se em analgésico social”, para quem “as caricaturas podem exagerar a realidade, mas não a inventam”. No momento em que quebra o quase anonimato para receber uma consagração, Mallarino revê o seu percurso e com ele o passado recente de um país. Foi nele que se construiu segundo um pressuposto imutável. “As boas caricaturas têm uma relação especial com o tempo, com o nosso tempo. As noas caricaturas procuram e encontram a constante de uma pessoa: aquilo que nunca muda, aquilo que permanece e que nos permite reconhecer quem não vemos há mil anos.” Nisso, ele é um manifesto contra a vertigem de um tempo comandado pela voragem tecnológica. 

Após décadas de domínio do realismo mágico na literatura da América Latina há uma geração a escrever muito próximo do real. Os seus últimos dois livros publicados em Portugal falam de realidades actuais da sociedade colombiana. Qual é o seu objectivo quando escreve romances como estes?
A tradição latino-americana tem uma veia realista muito forte. Ao lado das magias da García Marquez, de Cem Anos de Solidão, ou das fantasias de Carlos Fuentes em Terra Nostra, com a mistura de tempos e de lugares, há um realismo claro em Mario Vargas Llosa ou Juan Carlos Onetti. Falo dos romancistas que mais me marcaram. García Márquez foi uma presença foi muito importante na minha vida de leitor, mas não tanto na de romancista. Os meus romances nascem de um processo vasto no qual uma certa curiosidade se converte numa obsessão e depois num demónio, e esses demónios ganham uma forma que passa pelo realismo. Sobretudo, pela exploração do que mais me interessa: o espaço onde o público e o privado se encontram. Todos os meus romances estão obcecados por esse espaço em que a História e a Política são monstros que manipulam as nossas vidas enquanto indivíduos. Quero contar o que acontece nesse lugar.

Viveu muitos anos fora da Colômbia e no regresso a sua escrita quer estar próxima do país? 
Sim, depois de 16 anos fora, regressei num dos momentos mais interessantes dos últimos anos na Colômbia, o momento do processo de paz. Cheguei à Colômbia em Julho de 2012 e poucas semanas depois anunciou-se que o Governo estava em conversações de paz com a guerrilha das FARC. Na semana passada assinou-se o final da guerra, depois de 50 anos. Ao fim de todo esse tempo acordámos num país sem guerra, onde há um cessar-fogo. Nasci em 1973. Não conheci um dia de paz na Colômbia em toda a minha vida. Ainda que a guerra não me tenha atingido com a mesma dureza que a outros colombianos, andei toda a vida a sonhar com um país em paz e hoje isso existe. Falta apenas consolidar e espero que as coisas não se estraguem. Voltei a um país mudado para o bem, neste sentido, e para o mal noutros.

Quais?
Parece-me um país mais intolerante. Politicamente, religiosamente, moralmente. 

Não é uma intolerância mundial?
Acho que sim, mas na Colômbia está associada a processos antagónicos. Mais intolerante e reaccionário porque estamos a ter debates muito importantes que estão a ser ganhos pelo progresso, por avanços em temas como o casamento entre homossexuais, a liberdade religiosa, o direito das mulheres a abortar… Os grandes temas dos conflitos sociais hoje estão muito vivos na Colômbia e são contemplados pelas leis. Talvez por tudo isto o temperamento conservador reagiu de um modo forte. É um momento de muita polarização, de divisões. É muito interessante e estimulante. Obriga-me a estar muito presente, em debates, em conversas

Javier Mallarino, protagonista de As Reputações, está muito interessado no papel da memória. Na vida colectiva e individual e no modo como cada um lida com ela e com a sua capacidade transformadora. “Que estranha é a memória: permite-nos recordar o que não vivemos”, lê-se. E também o modo como esquecer faz parte do modo de existir. Num país como tantas feridas recentes, como vê o papel da memória?
A vida na Colômbia é uma constante disputa, uma batalha pela versão do passado que melhor nos define, e todos os dias enfrentamos diferentes versões de um relato do nosso passado comum. A Colômbia dos últimos 50 anos é uma segundo o Governo, outra segundo a Igreja, outra segundo a guerrilha, outra segundo os paramilitares, outra segundo o narcotráfico, e penso que a literatura é o lugar onde os cidadãos podem contar a sua própria versão. Ela dá-nos nosso direito de contar a nossa história. Eu tento recuperar para nós o direito de contar a nossa história, por oposição à história que nos contam o Estado, o governo, a Igreja, os exércitos…

E questionando o papel do chamado quarto poder, aqui através de um caricaturista e não de um jornalista.
Fui jornalista político durante sete anos na Colômbia e teria sido mais lógico que essa personagem fosse como eu. Escolhi um caricaturista porque o romance nasceu em parte do meu interesse por um grande caricaturista colombiano dos anos 20, Ricardo Rendón, cujo fantasma atravessa o romance. Rendón morreu, dando um tiro em si próprio, no momento em que tinha mais poder e a sua importância como crítico era mais forte. Continuamos sem saber porque se suicidou. Esse “porquê?” teve sempre um certo mistério para mim. Vi nele uma espécie de metáfora do que é a crítica na Colômbia, a solidão de quem contra-argumenta, de quem anda contra a corrente. Os críticos na Colômbia sempre estiveram muito sozinhos e vi a solidão dessas figuras de forma evidente no suicídio de Ricardo Rendón. Pensei que em vez de escrever um romance sobre Ricardo Rendón podia escrever sobre um caricaturista contemporâneo a viver no país que conheço e que de alguma maneira é um herdeiro moral de Ricardo Rendón. Isso permitia-me falar do papel dos meios de comunicação que conheço no país que conheço. Foi a primeira semente do romance; logo depois converteu-se noutra coisa. 

A mudança deu-se enquanto escrevia? 
Sim. Nunca conheço o meu livro antes de o escrever. Os meus romances são produto de uma procura. Ricardo Piglia, um escritor argentino que admiro muito, diz que escrevemos também para saber o que é a literatura. Acredito que escrevo para saber que literatura estou a escrever. O processo é de descoberta, de aprendizagem. Comecei a escrever sobre a vulnerabilidade da nossa imagem pública e a partir de dada altura dei-me conta de que escrevia sobre a vulnerabilidade da nossa imagem e memória privadas. O romance converteu-se num exame sobre a memória do que temos de mais íntimo, as recordações que não confessamos. Acredito que os romances são sempre mais inteligentes do que os seus autores e é preciso autorizá-los a que façam o que querem fazer.

Depois destes anos de escrita sente-se mais próximo da resposta à pergunta “que literatura escrevo”?
Não. Uma das tragédias do meu ofício é que não se aprende com cada livro. Cada livro é diferente e põe um problema distinto. A minha função como escritor é encontrar o método que melhor dê forma a essa obsessão, a esse demónio: a estrutura, a linguagem. Com este livro só descobri o que era este livro.

Houve sempre uma grande proximidade entre jornalismo e literatura na tradição latino-americana. E depois do realismo mágico há o regresso a uma espécie de literatura a que muitos chamam de denúncia.
Essa proximidade talvez seja pela influência de certo jornalismo norte-americano. Na América Latina soube-se utilizar as ferramentas da literatura para contar histórias reais. Gabriel García Marquez dizia que um conto não é mais do que uma crónica onde o que se diz é fictício, e uma crónica não é mais do que um conto onde o que se diz é real. Mas sou muito radical na ideia do que é literatura com base na imaginação, a ficção. Penso que a única razão pela qual escrevemos romances é para dizer coisas que não se podem dizer de outra maneira. A historiografia, o jornalismo exploram a realidade de uma maneira mais ou menos exaustiva, e a única obrigação da literatura é não ser redundante, não dizer outra vez o que já nos disseram o jornalismo e a História. Nesse sentido, a ficção e o jornalismo são completamente diferentes. O jornalismo é uma investigação que procura respostas, e a denúncia de que fala tem esse objectivo. E a literatura de ficção parte de perguntas, de incertezas, de dúvidas. Não escrevemos romances para denunciar, mas para explorar e entender. Para mim são similares enquanto métodos. Todos os meus romances são escritos a partir do método do jornalista, há um trabalho de investigação.

Como foi o deste livro?
Fiz muitas entrevistas com caricaturistas. Há sempre um grande trabalho de campo, sair para o mundo. Preciso de sair para fazer perguntas, investigar, procurar, para depois voltar à solidão do meu escritório e passar isso para a imaginação.

A geração de escritores a que pertence parece ver no romance um acto humanista de resistência. O romance pode ter esse papel?
Absolutamente. As características da nossa sociedade actual, das redes sociais, da presença digital são a rapidez, a ligeireza, a pouca profundidade, o ruído, a dispersão, a distracção. Os valores que o romance propõe, tal como o entendo, são opostos. O silêncio, a concentração, a lentidão, o contacto durante longo tempo com a mesma reflexão. O romance permite-nos conviver durante 300 páginas com a mesma voz e o mesmo assunto. Isto é completamente oposto à ética de todos os dias das redes sociais que consiste em passar um micro-segundo em cada tema.

É difícil resistir a isso?
Eu resisto. Não tenho Facebook nem Twitter e estou feliz. É uma posição meio anacrónica, mas encontrei uma existência mais satisfatória no meu contacto com o mundo através dos livros, do jornalismo, do que no mundo das redes sociais. 

Mallarino descreve-se como um humanista. É nesse sentido?
É ele que diz e não sei se tem razão. Ele quer recuperar uma espécie de perspectiva emocional e moral sobre o ofício do jornalismo que talvez se tenha perdido nesta época de técnicas digitais e de informação a que acedemos com um clique. Acho que ele está a pensar em voltar a pôr o homem no centro do processo jornalístico. Ele rebela-se muito conscientemente contra os avanços técnicos da sua profissão e nisso parece-se muitos com os caricaturistas entrevistei.

Eram velhos caricaturistas?
Não. De várias gerações. 

Divergem no modo como encaram a função da caricatura?
Não. Partilham a mesma poética sobre a caricatura. A sua pertinência social, o seu dever de crítica intransigente e dura e o cuidado com as formas e as ferramentas com que trabalham — o traço preciso e o ingrediente único que tem a caricatura e que não tem o artigo tão facilmente, que é a capacidade subversiva do humor, a sátira. 

E o questionamento do poder. O poder político, o poder do jornalismo, mas também o poder de um homem sobre o outro. 
O caricaturista, o desenhador satírico, continua a ter muito poder num país como a Colômbia onde há uma tradição muito forte que vem do século XIX, dos caricaturistas franceses, que eram duríssimos. Todos os caricaturistas colombianos com quem falei concordaram numa coisa: a vulnerabilidade da imagem dos políticos. 

Esse poder, ou influência, do caricaturista foi-se perdendo em quase todo o mundo. Na Colômbia mantém-se?
Mantém-se. Quando fui apresentar a tradução francesa do livro, uma das perguntas que me faziam era se na Colômbia um caricaturista é tão poderoso que possa ser alvo de ameaças. Não entendiam. Depois aconteceu o atentado ao Charlie Hebdo e perceberam que está muito viva a capacidade subversiva da caricatura, e que os caricaturistas continuam a ser uma ameaça para muita gente.

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