Depois dos golpes pós-modernos, um breve regresso ao passado

Nos últimos anos, os turcos viram os militares recuar aos quartéis e pensaram estar a assistir ao fim de uma era. O Exército que “era o Estado” deixou de o ser. Depois, os tanques voltaram a sair à rua.

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Turcos na Taksim, em protesto contra a tentativa de golpe de Estado da madrugada de sábado Osan Kose/AFP

O país que tem um general como pai viveu as suas primeiras décadas com o pai (e, depois da sua morte, o lugar-tenente do pai) no lugar de Presidente. Seguiram-se as primeiras experiências de governação civil, mas os militares não deixaram de mandar nos destinos dos turcos e, a prová-lo, protagonizaram três golpes de Estado, com e sem tanques, terminando com o chamado golpe pós-moderno, em que nem saíram dos quartéis.

A Turquia que começou por ser de Mustafa Kemal Atatürk só deixou realmente de estar nas mãos dos que se dizem seus filhos quando chegou ao poder um homem que tem a ambição de querer ser o novo pai dos turcos e que é o político mais popular na Turquia desde o “pai” fundador.

Podem chamar-lhe sultão, e ele não desdenha o desejo ultrapassar de Atatürk (pelo menos) em longevidade política, mas Recep Tayyip Erdogan há-de se celebrar até ao fim como “homem do povo”, contra tudo e contra todos, à custa do próprio povo se preciso for. Não importa. Por estes dias, importa é ter resistido. Os turcos defenderam a democracia, mesmo que o seu Presidente não o faça.

Curiosamente, o último dos golpes bem-sucedidos, o tal pós-moderno (“ordenado” através de um memorando com “recomendações”), visou Necmettin Erbakan e, com ele, a primeira experiência de poder islamista (Erdogan começou a vida política no movimento de Erbakan, o Partido do Bem-estar e, na altura deste golpe, já era presidente da câmara de Istambul), em 1997. Até então, os generais já tinham derrubado três primeiros-ministros, em 1960, 1971 e 1980.

Há muitas diferenças. 2016 não é 1997, e isso tem muito de positivo e deve-se, precisamente, a Erdogan, que antes de assumir a sua deriva autoritária ajudou (mesmo) a democratizar a Turquia e a pôr fim ao poder do chamado Estado profundo . Desta vez, o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas não estava com os golpistas. E Erdogan não é primeiro-ministro, é Presidente mas governa como se fosse, ao mesmo tempo, chefe do Governo (na altura, foi o Presidente que deixou cair Erbakan).

30 anos é muito tempo

Antes, no golpe das “recomendações”, oficiais kemalistas depuseram sucessivamente o conservador Adnan Menderes, eleito dez anos antes nas primeiras eleições multipartidárias da Turquia (1960), condenado à morte e enforcado; e o Governo do seu herdeiro político, Suleyman Demirel (1971).

Finalmente, nos anos do caos em que o terrorismo de extrema-direita e de extrema-esquerda se enfrentava em confronto armado (ao mesmo tempo que se assassinavam políticos e os rebeldes curdos cometiam os primeiros atentados), os generais decidiram intervir para dissolver a Assembleia Nacional e suspender a Constituição em vigor. Anunciaram que tinham “tomado conta do Estado” e avançaram. Seguiu-se uma repressão pesada, centenas de milhares de detenções, centenas de execuções e a ordem, prontamente seguida, para uma “renovação” política que viu partidos mudarem de nome e de lideranças.

Foi em 1980. Não foi assim há tanto tempo, mas foi porque entretanto a Turquia não é mesmo a mesma. Os militares já tinham testado Erdogan – foi em 2007, o AKP, de Erdogan, estava há cinco anos no poder e ele queria ver Abdullah Gül na Presidência. Passava pouco da meia-noite de 27 de Abril quando o Estado-Maior publicou no seu site um comunicado a vetar a candidatura (o chefe de Estado ainda era escolhido por votação entre os deputados), lembrando que as Forças Armadas “são o garante infalível do laicismo”. Seria um golpe 2.0, mas não chegou a ser.

Um país é um país

A mulher de Gül, Hayrunisa, usava hijab (lenço islâmico que cobre os cabelos) e esses ainda eram os tempos em que uma turca de lenço não podia tomar posse como deputada ou sonhar em entrar na universidade, por melhores que fossem as suas notas. Os generais avisaram, Erdogan pagou para ver. E esmagou. Gül foi mesmo eleito Presidente e os turcos foram chamados a votar em legislativas antecipadas e reforçaram o poder de Erdogan e do AKP. Em eleições, como deve ser.

Na Turquia dos fantasmas (Atatürk será sempre uma sombra mas foi apenas a primeira), o AKP foi uma desempoeirada novidade. O Erdogan de hoje é aquele que construiu para si um palácio com milhares de quartos e guardas vestidos como soldados otomanos só para ele passar no meio deles. Não pode continuar a dizer que é um “homem do povo”. Mas já foi. E sem ele e o AKP haveria muito mais turcos na pobreza e a elite permaneceria a de sempre. Os generais de topo continuariam a acreditar que tudo se resolve a golpe e os juízes a não saber o que é separação de poderes.

O problema da Turquia é que Erdogan e o AKP já foram dois e agora são um só. E que o mesmo Erdogan que lutou pela separação de poderes a ataca agora, querendo para si o papel de líder-todo-poderoso protagonista ao leme do país pelo menos até ao centenário da República, em 2023.  

A sorte de Erdogan é que democratizou a Turquia antes de a tentar vergar. E na noite de sexta-feira, perante a imagem de um regresso ao passado, com tanques nas pontes do Bósforo, em Istambul, e caças a sobrevoar o Parlamento, em Ancara, os mesmos democratas que ele agora persegue (jornalistas, opositores, curdos…) saíram em sua defesa, enchendo as mesmas praças onde se juntaram nos últimos anos em protesto contra as suas decisões. Na verdade, saíram em defesa da Turquia. Ele tem tendência a pensar que um e outro são o mesmo. Os turcos sabem que a Turquia é maior do que qualquer Presidente. Salvaram Erdogan para se salvarem e assim aconteceu que um golpe de Estado falhou na Turquia.

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