O “Brexit”: drama britânico, desafio europeu

O sobressalto passa pela mobilização de arquitectos e de profetas capazes de voltar a oferecer um caminho e uma alma a esta união inédita.

Se o “Brexit” constitui um tremor de terra para a União Europeia, ele resulta da falha sísmica presente desde as origens da relação entre o Reino Unido e a “Europa”. Numerosos factores conjunturais contribuíram para o veredicto referendário. Incluindo a rejeição das elites políticas e financeiras londrinas e as lutas pelo poder dentro do partido conservador. Mas este veredicto reflecte também as especificidades históricas e geográficas do Reino Unido, nomeadamente as que estão ligadas à insularidade, ao seu passado imperial, à sua abertura económica ao mundo ou ainda à corajosa resistência ao nazismo, que explica a razão pela qual os eleitores mais velhos não são tão pró- europeus do que noutros países. Mas também não convém esquecer demasiado depressa a eurofobia grosseira e recorrente da imprensa popular, que também ela desempenhou um papel chave na forma como decorreu o escrutínio de 23 de Junho.

A campanha referendária britânica foi, naturalmente, seguida pelos outros povos da União, que tiveram por vezes o sentimento de estavam a “votar por procuração”. Ela centrou-se nos desafios que continuam a estar no centro dos debates na maioria dos países da União Europeia e em Bruxelas, como a livre circulação das pessoas e dos trabalhadores ou o exercício dos poderes entre a União e os Estados-Membros. Por isso é importante devolver a Shakespeare o que é de Shakespeare: de um lado, para explicar as especificidades do voto de 23 de Junho; do outro, para levar a cabo o divórcio desejado pelo povo britânico e, depois, definir a nova parceria entre o RU e a UE.

A União não é, de maneira nenhuma, uma “prisão dos povos”, os britânicos são livres de sair porque uma maioria deles é isso que quer: é no estrito respeito desta vontade popular que devem a partir de agora inscrever-se as reflexões e as acções das autoridades de Londres, dos Estados-membros e dos cidadãos da União.

O “Brexit” dará lugar a “réplicas” noutros países europeus, estimulando os apelos a referendos nacionais sobre a pertença à União. Esta predilecção pelo referendo é, muitas vezes, defendida por forças políticas minoritárias que não conseguem conquistar o poder pela via da democracia representativa: depende delas ganhar as próximas eleições para organizar este ou aquele referendo, sobre a EU e sobre qualquer outra questão.

Quando olhamos para o outro lado da Mancha não devemos confundir demasiado depressa o eurocepticismo, ou seja, a críticas, por vezes contraditória, da União e a degradação notável da sua imagem, e a eurofobia, isto é, a vontade de a deixar. Também não podemos esquecer que, para muitos outros Estados-membros, sair significaria também abandonar o euro e o espaço Schengen, e que esta ruptura dupla teria consequências muito mais pesadas do que a “simples” saída britânica, que já é extremamente desestabilizadora para o país. Em síntese, evitemos sucumbir à ideia de que o “Brexit” é o início de um processo de “deslocamento” da União, quando esta última é, na realidade, confrontada com importantes divisões entre os povos e os Estados-membros que a compõem, sem a intenção de bater com a porta.

O “Brexit” é, sobretudo, mais um desafio político para a União, que deve acelerar a tomada de consciência quanto à gravidade da crise que a atinge e incitá-la a agir com ainda mais vigor. Com todo o respeito que devemos aos nossos amigos britânicos, que optaram por uma via solitária, as autoridades nacionais e europeias devem concentrar-se em outros desafios urgentes, demonstrando por que somos mais fortes juntos perante a mundialização.

Cabe-lhes sublinhar ainda mais que os europeus partilham uma vontade comum de conciliar a eficácia económica, coesão social e protecção do ambiente, num quadro pluralista, e cabe-lhes também tomar as decisões que traduzem esta vontade de equilíbrio único no mundo, nomeadamente sustentando o crescimento e o emprego, por exemplo, por via de um novo grande plano de investimento, amplificando o “Plano Juncker”.

Cabe-lhes também dizer que “a união faz a força” quando a História se torna trágica: terrorismo islâmico, caos sírio e líbio, movimentos migratórios caóticos, agressividade russa, mas também finanças loucas, dependência energética, mudanças climáticas ou a vontade de poder da China… Outras tantas ameaças e desafios face aos quais a União deve permitir-nos controlar melhor o nosso destino, partilhando a nossa soberania, no prolongamento da criação bem-vinda de um Corpo Europeu de fronteira.

Cabe às autoridades nacionais e europeias responder à angústia identitária expressa pelos cidadãos da União, que passam a representar 6 por cento da população mundial depois do “Brexit”, e que beneficiam de forma muito discriminatória da abertura económica e cultural internacional – o lançamento de um programa “Erasmo Pro” [cursos profissionais] para aprendizes, seria particularmente simbólico neste contexto.

Cabe-lhes, em suma, conduzir os seus povos num novo mundo pleno de oportunidades, mas também de ameaças pesadas, e no qual a Europa é cada vez menos o centro. Isso implica falar ao coração e à alma dos cidadãos europeus, respondendo às suas esperanças e aos seus medos, sem os reduzir à condição de consumidores ou contribuintes: iniciativas destinadas a reforçar a nossa segurança colectiva devem combinar urgência operacional com dimensão emocional, por exemplo, através da criação de um Ministério Público europeu antiterrorista.

A União Europeia não precisa apenas de bombeiros, chamados pelo “Brexit” para enfrentar uma nova crise: o sobressalto passa pela mobilização de arquitectos e de profetas capazes de voltar a oferecer um caminho e uma alma a esta união inédita, forjada na dor dos seus pós-guerras, e que conserva plenamente todo o sentido na mundialização.

Presidente, director e membros do Conselho de administração do Instituto Jacques Delors

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