Abençoados ouvidos

A música nacional deste século não seria a mesma sem eles. Retratos de cinco dos produtores portugueses mais activos dos últimos anos.

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Enric Vives-Rubio

Ficam nos bastidores para que os discos dos outros brilhem com mais força. Gostam de mexer em botões e sonham acordados quando o fazem. A indústria encolheu (e em cada casa com computador nasceu um potencial estúdio), mas eles não desapareceram: fornecem o par extra de ouvidos de que os músicos precisam e ajudam-nos a pôr em disco o que fazem na sala de ensaios e nos concertos.

Falamos de técnica, claro, mas de muitas outras coisas: os produtores são especialistas em música, mas também em psicologia, diplomacia e filosofia, diz Zé Nando Pimenta. Com duas décadas de experiência no ofício, o fundador da Meifumado juntou-se ao mais novato Fred Ferreira. Têm um objectivo simples para a estrutura que mantêm em Lisboa: ser “o melhor estúdio do mundo”.

Não serão os melhores do mundo, mas são, pelo menos, os mais importantes da história da gravação de discos em Portugal. Em 2007, os Estúdios Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, foram parar às mãos de Nelson Carvalho, discípulo de Mário Barreiros.

Os microfones que gravaram Paredes e Amália estão agora ao serviço da nova música portuguesa, dos Linda Martini a David Fonseca. Numa altura em que os discos são gravados a correr, porque os orçamentos são magros, Nelson gostava que houvesse mais “tempo para respirar”.

Eduardo Vinhas sabe da importância do tempo. Por isso, não é estranho que deixe B Fachada entregue às suas idiossincrasias (como gravar um disco sempre com distorção) ou que grave em contínuo Norberto Lobo porque a magia do guitarrista pode aparecer a qualquer momento. “Muitas vezes os músicos já são tão incríveis em termos de sonoridade que o melhor que posso fazer é sair da frente”, explica.

O Golden Pony, em Lisboa, é hoje uma referência na cena indie nacional. Eduardo construiu-o com as suas próprias mãos – literalmente.

Hoje, todo e qualquer som pode ser corrigido no computador. Por acreditar que outros caminhos dão melhores resultados, o portuense João Brandão aprendeu a trabalhar sem computador, sem Ctrl + Z.

Em 2010, João decidiu que queria um estúdio que privilegiasse o analógico e começou a equipar os Estúdios Sá da Bandeira, fundados em 2007, com peças de outros tempos – como um microfone de um tanque. 

Nas linhas que se seguem traçamos o retrato destes cinco produtores, que estão entre os mais activos da música portuguesa deste século.

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Enric Vives-Rubio

Zé Nando Pimenta e Fred Ferreira: Unidos para subir o nível

Fazer um disco, dizem, é um trabalho “infinito”, ao mesmo tempo psicologia, diplomacia, engenharia, filosofia e, claro, música.

 

A Meifumado fundiu-se com os Estúdios Iá, em Lisboa. Com muita experiência acumulada, Pimenta e Ferreira têm vistas longas. “Aceitamos tudo de braços abertos.”

Zé Nando Pimenta não faz a coisa por menos: “Quero ter o melhor estúdio do mundo.” Na cabeça ainda guarda memórias dos estúdios de Nova Iorque, onde trabalhou depois de aprender produção no Berklee College of Music, em Boston.

“Fazia parte da equipa de produção do Arto Lindsay”, conta. “Era superfã dele. Fui bater à porta do estúdio. Para minha surpresa eles arrendavam espaço. Umas semanas depois estava a trabalhar com ele.”

Isto aconteceu no final dos anos 1990. “Estive lá dois anos, ainda vi a cena como era, o que já não existe”, conta. Os estúdios desapareceram ou encolheram: por culpa da crise da indústria fonográfica e da especulação imobiliária.

Em 2004, Zé Nando Pimenta, hoje com 40 anos, fundaria a Meifumado, editora e estúdio, inspirado pelos grandes estúdios de Nova Iorque. “Tive a sorte de os ver. Eram máquinas que funcionavam muito bem. Tinhas os interns [estagiários] a aprender com os mestres. O pessoal técnico arranjava os micros, as mesas, estava tudo impecável. Era um nível de trabalho muito perfeccionista. Fiquei com a vontade de fazer as coisas bem feitas e sei que para as fazer bem feitas todas as partes têm que estar a funcionar. Tem que estar tudo lá. Um disco bom. há muito poucos. Há milhares de discos, mas discos com boas canções, boa produção, bom som, boas misturas, há para aí dez [risos]. Que eu conheça, claro.”

Nos últimos meses começou a transferir o material do estúdio Meifumado de Famalicão para Lisboa. Zé Nando juntou-se a Fred Ferreira, dos Estúdios Iá e músico (Orelha Negra, 5-30). Conheceram-se no Verão quente de 2010, em Braga, quando os Orelha Negra participaram no Meifilmado, um projecto vídeo da Meifumado.

Na visita que fizemos ao estúdio que era Iá e virou Meifumado, em Campo de Ourique, encontrámos Fred a ensaiar com Slow J, projecto entre o R&B e o hip-hop, e ouvimos Francis Dale a fazer perguntas a Zé Nando sobre equipamento musical antigo, mas podíamos ter encontrado Mafalda Veiga ou Pedro Vaz a fazerem pop-rock com a rádio nas respectivas miras. “Aceitamos tudo de braços abertos”, garante Fred. “Também nos ajuda a perceber os nossos limites.”

Um trabalho “infinito”

A dupla, iniciada este ano, tem funcionado bem. “O Zé é uma pessoa de arriscar mais, faz um tipo de produção em que gosta de inovar. Arrisca, faz coisas diferentes. Eu, muitas vezes, sou mais pragmático, no sentido de ouvir o que o artista tem a dizer, de tentar ir na linha dele”, descreve Fred, que produz há menos tempo do que o colega.

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Enric Vives-Rubio

Na régie, encontramos equipamento dos anos 70 impecavelmente arrumado. “Fazer um disco é um caos. É importante estar tudo organizado”, justifica Zé Nando. Tem ideias definidas sobre o que faz: um trabalho “infinito” que é, ao mesmo tempo, psicologia, diplomacia, engenharia, filosofia e, claro, música (“desde arranjos a linhas melódicas”).

“O nosso papel é apresentar paletas de cor, dar alternativas”, aponta Fred. “Há produtores que têm muita personalidade — ouves um disco e sentes que ele está ali. Há outros [discos], como os do Rick Rubin, em que não sabes que ele está lá. Tanto pode fazer um disco da Adele, como dos Slayer ou dos Beastie Boys e tu não percebes que ele está ali.”

Antes da chegada de Zé Nando, Fred tinha montado neste espaço o quartel-general de uma estrutura multidisciplinar: um estúdio de gravação, uma agência de concertos, salas arrendadas a músicos e uma editora, a Kambas. A visão larga encaixa na da Meifumado. “Tivemos a pretensão de editar livros, bandas desenhadas, e tínhamos a parte toda da agência, dos concertos”, exemplifica Zé Nando.

Hoje, é fácil gravar música em casa. As ferramentas democratizaram-se, mas “chegaram a milhares de pessoas que não deviam estar a usá-las”. Não é elitismo, mas “puramente estatística”, atira.

Voltamos ao objectivo do fundador da Meifumado: “Ter o melhor estúdio do mundo”. Quer ter um espaço maior e gente nova a aprender com ele. “O nível em Portugal subiu imenso, tanto da produção como das bandas, o que as bandas esperam de si próprias”, defende. “A nossa meta é sempre fazer melhor do que os outros todos, independentemente de estarmos em Portugal.”

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Enric vives-rubio

Eduardo Vinhas: sonhar acordado

Montou o Golden Pony, o estúdio referência da música indie portuguesa nos últimos dez anos.

 

Ficou sem banda e com um espaço vazio nas mãos. Eduardo Vinhas montou o Golden Po-ny, em Lisboa, estúdio referência da música indie portuguesa nos últimos dez anos.

Quando B Fachada, então um (quase) perfeito desconhecido, lhe entrou pelo estúdio adentro, Eduardo Vinhas soube que estava ali uma cabeça criativa que não era como as outras. Que faz o músico virado produtor, já com alguma “escola”? Deixa acontecer.

“Chega-me aqui aquele rapaz e diz: ‘Não, não. Vou pôr aqui um barulhinho de uma coisa qualquer. E agora vou bater num caixote”, descreve Eduardo. “Camadas e camadas de loucura”, saídas do cérebro de uma “criança grande”, “totalmente desrespeitosa” das convenções técnicas, resultaram em música que o rosto do estúdio Golden Pony nem acreditava poder existir. Não quis impor ordem, tentou apenas acompanhá-lo “naquela loucura”.

A gravação do álbum que dali saiu, Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado (2009), tinha um pré-requisito: ser feita em dois dias e “sem dinheiro”. A quase gratuidade não é coisa rara no Golden Pony: é uma forma de ajudar a cena indie onde Vinhas se formou musicalmente (tocou nos Jaguar). Discos seguintes de Fachada gravados ali compensaram financeiramente aquela primeira aventura quase pro bono.

Eduardo Vinhas, lisboeta de 40 anos, instalou-se num prédio da Rua de São Mamede, na capital, há cerca de dez anos. Queria um espaço para a sua banda de então, mas a realidade trocou-lhe as voltas. A banda acabou. “O que vou fazer a isto?”, questionou-se. O infortúnio virou “coisa boa”: com material “rudimentar”, iniciou ali um estúdio onde já gravou meio mundo da cena independente portuguesa (Norton, Gala Drop, Hipnótica) e não só (António Zambujo, Josephine Foster, Steve Gunn com Mike Cooper).

Não estudou o ofício, aprendeu-o fazendo — tudo, da captação à masterização. Percebeu que queria mexer em botões, microfones e mesas de misturas ainda no tempo dos Jaguar. “Sem me aperceber, estava a fazer trabalho técnico e de produtor. Às tantas dava por mim a gravar mais do que a tocar, a tentar organizar aquele material todo. Aconteceu espontaneamente”, recorda-se.

Visto da rua, o prédio do Golden Pony parece mais um edifício esquecido de Lisboa. Lá dentro, onde já estiveram as cavalariças do correio real, tudo muda. Há sintetizadores de várias eras ao lado de polaróides que registam quem por lá gravou. Num terraço, onde nascem plantas selvagens e as árvores forçam o chão a entortar-se, há cadeiras e um grelhador. “Às vezes fazemos aqui patuscadas.”

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Enric Vives-Rubio

Facilmente nos esquecemos de que estamos num estúdio. “Não tem um ar técnico. Parece mais um bar de alterne do que um estúdio”, brinca. Vinhas quis que assim fosse. “Foi construído pelas minhas mãos e pelas do Rodrigo [Alfacinha]”, afirma. Um verdadeiro “trabalho de construção civil” num espaço que “estava inabitável”, sem água nem luz.

Navegar no perigo

Recentemente, questionou-se: “Como é que vim aqui parar?”. E respondeu: “O raio daquela miúda, a culpa é dela.” A “miúda” é a já desaparecida Elsa Pires, agitadora incansável da editora Bee Keeper, um dos motores indie nacionais durante os anos 90. “Ela passou-me duas coisas: a energia, a vontade de fazer e não parar; e, mais importante, a noção de que podes fazer o que quiseres sozinho. Não é preciso esperar por alguém ou por um crédito de um banco. Queres fazer, faz.”

Eduardo Vinhas fez. Fez um estúdio que não funciona à hora. Não podia ser assim, por exemplo, com o guitarrista Norberto Lobo, que levou Vinhas atrás dele para gravar “em salas que têm lareiras”. Por vezes, deixa o microfone a gravar — com Norberto, a magia pode acontecer a qualquer momento. “Muitas vezes os músicos já são tão incríveis em termos de sonoridade que o melhor que posso fazer é sair da frente”, diz Vinhas, que, não por acaso, já foi psicólogo.

Noutros casos, o produtor pode fazer o que não é suposto. Aconteceu com B Fachada e Pega Monstro, que gravaram com distorção excessiva num gravador de fita (uma distorção que não destrói, antes serve de textura). Sem purismos, no Golden Pony privilegia-se o material analógico e o trabalho sem computador. “Quando estás no computador acabas por estar a fazer com os teus olhos um trabalho que os teus ouvidos deviam estar a fazer. Começas a olhar, a olhar, a olhar e ficas completamente preso no monitor. Mesmo a posição do rato. A mão completamente dura, as costas completamente curvas.”

Desligado o ecrã, fica-se “mais ousado”, ignora-se as zonas de “perigo”, “os vermelhos” e os sentidos proibidos ditados pelo ecrã. Mais facilmente o cérebro pode entrar num estado entre a lucidez e o sonho. “Sonhar acordado é a forma ideal de estar a produzir.”

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ADRIANO MIRANDA

João Brandão: sem Ctrl + Z

Nos Estúdios Sá da Bandeira pode-se fazer uma gravação 100% analógica, sem tocar num computador do início ao fim, orgulha-se o produtor.

 

Nos Estúdios Sá da Bandeira o material analógico é rei. Nasceu com um computador e um par de microfones. Hoje tem até um microfone de um tanque de guerra.

Algures entre a cozinha e as salas de gravação e mistura dos Estúdios Sá da Bandeira (ESB), no Porto, há um “armário”. Ignorantes, passámos por aquele bloco de madeira e seguimos para a mesa onde conversámos com João Brandão. Mais tarde ficaremos a saber: aquilo não é um armário, mas um EMT 140, um plate reverb do final dos anos 50.

Um plate quê? A pergunta justifica-se. Estas máquinas — que se ligam à electricidade para fazer vibrar um prato que gera reverberação num som — desapareceram de muitos estúdios. “Pesa 250 quilos e não funciona de forma igual todos os dias”, revela João, de 30 anos. “Havia muitas em Portugal, mas desapareceram quase todas.”

O EMT 140 faz parte da longa lista de material analógico que João foi acumulando desde que decidiu apostar na fita e em equipamento antigo. “Neste estúdio pode-se fazer uma gravação 100% analógica, sem tocar num computador do início ao fim”, orgulha-se.

“Com um computador e um par de microfones”, os ESB nasceram em 2007 pela mão de João e outros dois alunos de Produção e Tecnologias da Música da Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo, no Porto. “Estudei música alguns anos, mas nunca tive grande jeito para ser instrumentista”, confessa. Em 2002, quando gravou um disco enquanto músico, teve o primeiro contacto com a vida de estúdio. “Assim que pus os pés naquele estúdio, percebi: isto é muito mais fixe do que tocar.”

Um pedaço de um tanque

Em 2010, decidiu que queria um estúdio que privilegiasse o analógico. Fez “muitas asneiras” e aprendeu a trabalhar sem computador. Descobriu “outros métodos de trabalho” nesse mundo sem Ctrl + Z, sem volta-atrás, em que as bandas “sabem que têm de dar o seu melhor”.

Nos ESB têm material de sobra para isso: uma bateria de 1969; “órgãos italianos chungas” comprados no eBay; um piano na imponente sala principal de gravação (83 metros quadrados); microfones dos anos 30 e 40 guardados religiosamente em caixinhas.

A forma como se grava dita, em boa medida, como vai soar uma canção. Por isso, João colecciona microfones, entre os quais um, verde-tropa, que fazia parte de um tanque de guerra. O microfone certo no sítio certo é meio caminho andado para João, que não quer pôr em disco “uma coisa que não existe”.

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ADRIANO MIRANDA

“Fazer as coisas de forma diferente” talvez tenha posto os ESB no mapa, admite. Os estúdios têm sido a casa natural para vários artistas ligados à editora portuense Lovers & Lollypops (dos Glockenwise a Throes + The Shine), mas também a músicos pop-rock como Alberto Índio e vedetas internacionais (Run the Jewels).

Para muitos músicos, os ESB foram os primeiros estúdios em que puseram os pés. “É importante tirar-lhes o medo de estar em estúdio, que pode ser bastante intimidante. Por isso é que criámos este espaço [a cozinha, onde há canecas dos Black Sabbath e Guns N’ Roses], que não tem um ar muito convencional, o que deixa as pessoas mais à vontade. Não é cinzentão, não é uma fábrica de fazer discos.”

As magras carteiras da indústria actual levam a que um disco independente se faça, por regra, em menos de dez dias. “Não há grande tempo para duvidar dos projectos e da direcção”, admite João, que tenta, por isso, seguir os “instintos” e não pensar muito. “Nunca fui um produtor muito picuinhas na cena da perfeição musical, interessa-me muito mais sacar a emoção.”

Inspira-se em gente como Vance Powell, que trabalhou com Jack White e outros adeptos da fita. “Foi uma das pessoas que me inspirou a fazer coisas que não são a norma da indústria, mas que são diferentes e também têm sucesso”, revela. Essa norma — rock limpinho, “supermoderno, todo esmagado”, corrigido por Auto-Tune e edições várias — está em declínio, abrindo espaço para “produções mais humanas”, à antiga.

“Já não é tão estranho fazer um disco de garage rock a soar lo-fi [baixa fidelidade] porque é aquilo que a banda quer. E o público também quer. Isto a nós, gajos que gravam discos, deixa-nos numa posição mais confortável.”

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Daniel Rocha

Nelson Carvalho: como respeitar um legado

Gosta de ser um produtor discreto, assume. “Não acho que a minha mão se tenha que ouvir”, justifica.

 

Trabalha com microfones que já gravaram Paredes e Amália. Ressuscitou para a música os Estúdios Valentim de Carvalho e sente-se um “privilegiado”. Muitos artistas não o largam — mesmo que ele só queira passar despercebido.

Estão aqui microfones que Carlos Paredes e Amália usaram, máquinas feitas pela EMI iguais às dos estúdios Abbey Road, onde os Beatles gravaram, equipamento com aspecto industrial do tempo em que a indústria fonográfica dava os seus passos de bebé em Portugal. Não há outros estúdios assim em Portugal: fundados em 1963, os estúdios Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, são o espaço mais mítico da história da gravação de música (e não só) do país. Julio Iglesias, os Shadows e Vinicius de Moraes passaram por estas paredes, uma espécie de fábrica de cultura pop.

“Já deveria ter sido feito um museu. Mas mais interessante ainda seria manter tudo a funcionar. O museu vivo seria o melhor objectivo”, diz Nelson Carvalho, o engenheiro de som e produtor que há nove anos tem a seu cargo a gravação de música nos Valentim de Carvalho.

Quando chegou, a sala maior de gravação, uma réplica do estúdio 2 de Abbey Road, já era há vários anos um estúdio de televisão. O actual estúdio de gravação de música era usado para trabalhos como dobragens. Nelson, hoje com 45 anos, pôs mãos à obra e voltou a fazer dos Valentim de Carvalho uma referência para quem faz e ouve discos portugueses.

“Sinto-me privilegiado por trabalhar aqui”, confessa. “Este equalizador dos anos 60 funciona todos os dias”, exemplifica (era uma peça revolucionária para a época: permitia mudar o timbre dos instrumentos). Não é fetichismo: estas velhas máquinas “soam mesmo bem”. “O equipamento era feito sem pensar no preço ou na lei do mercado. Era para ser bom”, sublinha. “O que me alicia é essa mistura entre sistemas digitais do ano passado e a tecnologia mais antiga. As coisas boas ficam para sempre.”

Aprender com um mestre

Nos anos 1990, foi técnico de som de bandas como Clã e Blind Zero, que viria rapidamente a encontrar em estúdio. A transição foi “natural”, diz este licenciado em Informática e Matemáticas Aplicadas, que foi absorvido pelos bastidores da música, uma paixão antiga. Continua a fazer o roteiro de concertos, ajudando as bandas a ter o melhor som possível ao vivo. “Preciso das duas coisas. Preciso de sair daqui, preciso daquela adrenalina dos concertos.”

Aprendeu os segredos da produção no Porto e Gaia, como assistente de Mário Barreiros, referência da produção de discos em Portugal, sobretudo na década de 90. “Ele foi, pelo menos na área da pop, o primeiro produtor a fazer as coisas como deve ser. Houve uma altura em que era muito fácil perceber que discos eram feitos em Portugal porque tinham mau som, com raras excepções. A partir de uma certa altura, as coisas deram um salto enorme e ele é dos principais responsáveis por isso”, acredita. O segredo? Uma procura “exaustiva” do melhor som, uma “insatisfação contínua”, “às vezes um bocadinho enervante”. Qualidades que Nelson diz ter herdado de Mário Barreiros.

Dreams in Colour (2007), de David Fonseca, foi o primeiro álbum inteiro que Nelson gravou nos Valentim de Carvalho. Seguiram-se muitos outros, dos Orelha Negra a Camané, dos Linda Martini a Sean Riley & The Slowriders, como produtor ou engenheiro de som. Muitos artistas habituaram-se a gravar com ele. É o caso de David Fonseca. “Até acho que ele provavelmente devia fazer discos com outros produtores, mas ele acha que eu o entendo. Por isso, acaba por vir cá parar”, conta.

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daniel rocha

Gosta de ser um produtor discreto. “Não acho que a minha mão se tenha que ouvir”, justifica. “Todas as minhas produções são co-produções, são sempre com a banda. Eu não assumo nada sozinho porque os discos são deles, sou sempre ajuda à banda, ao artista.”

Ainda há excepções, como o novo álbum de Marta Hugon, em que “houve tempo para respirar”, mas Nelson Carvalho lamenta a pressa com que se fazem discos hoje. Longe vão os anos em que se conseguia ter três semanas para fazer um álbum. “Hoje, estão três, quatro dias, depois vão para um sítio mais barato, e voltam para as misturas”, resume. “Essa não é a melhor maneira de fazer os discos. Não se deve gastar um ano a fazer um disco, mas tem que haver tempo para pensar e perceber se estamos a ir bem.”

Consequências de uma indústria que “mirra” porque “os discos não vendem”. “É pena porque nunca vai nascer uma instalação destas [como os estúdios Valentim de Carvalho]. Não há dinheiro que pague isto.”

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